O desvio de dinheiro impede que a ajuda
chegue a quem necessita e contribui para tornar o público menos suscetível a
colaborar com campanhas humanitárias
Acostumada
a socorrer populações civis atingidas por guerras e desastres naturais, a Cruz
Vermelha enfrenta, no Brasil, um flagelo igualmente nocivo e não menos mortal,
cuja gravidade chegou a levantar dúvidas sobre a própria continuidade de suas
operações no país -- a corrupção.
Movimentações
suspeitas e gastos sem comprovação ocorridos entre 2010 e 2012 indicam que R$
25 milhões doados à entidade podem ter sido desviados por ex-diretores. Os
problemas foram apontados pela consultoria independente Moore Stephens, com
sede em Londres, contratada para passar um pente-fino nas contas da filial
brasileira.
Conforme
uma versão, a auditoria teria sido pedida pela Federação Internacional da Cruz
Vermelha, com sede na Suíça; outra versão dá conta de que a iniciativa de
investigar as denúncias feitas por uma funcionária ao Ministério Público partiu
da diretoria da Cruz Vermelha Brasileira (CVB).
Conforme
a auditoria, cerca de R$ 17 milhões do dinheiro arrecadado para auxiliar as
vítimas da chuva na região serrana do Rio, do tsunami no Japão e da fome na
Somália, além de financiar campanhas contra a dengue, foram parar na conta de
uma ONG do Maranhão, dirigida pela mãe do ex-vice-presidente da entidade. A
diretoria afastada afirma que a auditoria se equivocou e tenta explicar o
desvio de recursos como uma operação necessária, para evitar que o dinheiro das
doações fosse confiscado nas contas da CVB, devido a dívidas
trabalhistas.
A
atual diretoria não economiza adjetivos para se referir aos ex-gestores, que
qualifica como uma "minoria desonesta". Em carta aos voluntários,
membros, doadores e ativistas humanitários, publicada no site da entidade, a
presidente nacional da CVB, Rosely Pimentel Sampaio, ataca: "Três anos de
gestão deficiente e corrupta em ações diretas e específicas não podem apagar
outros de trabalhos relevantes da Cruz Vermelha Brasileira, desenvolvidos por
nossas filiais em vários estados do Brasil, inclusive no desastre da Região
Serrana, pela Filial Rio de Janeiro."
As
irregularidades estariam, segundo a presidente, concentradas nas filiais do
Rio, Maranhão e Ceará. Diante da repercussão do escândalo e do prejuízo
incontornável para a imagem de uma instituição que depende, fundamentalmente,
da confiança da população para realizar seu trabalho, a CVB está empenhada em
uma operação de salvamento diferenciada. A missão, agora, é resgatar a própria
credibilidade.
A
operação envolve uma tentativa de responsabilizar judicialmente os
ex-diretores. Fala-se também em pleitear na Justiça a devolução do dinheiro
desviado. "Este é um momento de reflexão e, mais do que nunca, de mãos à
obra para limpar o nome da maior organização humanitária do mundo, no nosso
país", pondera a presidente Rosely.
Na
verdade, escândalos financeiros não são novidade para a CVB, que há mais de 20
anos tem sido denunciada por desvios de dinheiro de campanhas humanitárias para
o bolso de seus dirigentes e gestão fraudulenta de verbas públicas. Em 1997,
seis diretores, entre eles a ex-presidente nacional, já falecida, foram
condenados a um ano de prisão em regime aberto, por falsidade ideológica. Eles
teriam falsificado uma ata de reunião da diretoria para, segundo acusou o
Ministério Público, impedir que um interventor nomeado pela Justiça assumisse a
direção da entidade.
É
triste ver a que ponto chegou, no Brasil, a tradicional organização fundada em
1863, devido a gestões pouco eficientes e inescrupulosas. O desvio de dinheiro
doado impede que a ajuda chegue a quem necessita e contribui para tornar o
público menos suscetível a colaborar com campanhas humanitárias. Apenas a
punição rigorosa dos responsáveis e a restituição dos valores desviados podem
recuperar a imagem da Cruz Vermelha Brasileira -- e, mesmo assim, com arranhões
que só o tempo e uma gestão transparente conseguirão apagar.
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