Por José
Sarney
Estava
fazendo as minhas orações de deitar quando minha mulher me lembrou a data que
chegava ao fim: 15 de março. Ela então acrescentou: “Você se recorda que, há 33
anos, nesta data, assumia a Presidência da República?” Eu respondi-lhe: “Não,
não me lembrava.”
Lembrei-me
do que tinha ocorrido no dia 24 de abril de 1985: estava eu no sepultamento de
Tancredo Neves, em São João Del-Rei, no Cemitério da Igreja de São Francisco de
Assis – projetada pelo Aleijadinho, com algumas obras notáveis, como São
Francisco recebendo os estigmas, no frontão -, quando, depois da cerimônia, em
que eu estava preso de profunda emoção, lembrei-me, já às 11 horas da noite,
que, naquele dia, eu completava 55 anos de idade. A tragédia que vivíamos com a
morte do nosso líder, que até hoje lamento e me comove, me fizera esquecer até
a data do meu aniversário – nem ninguém se lembrou dela.
Hoje, 33
anos depois, recordo a dificuldade que tive quando caiu em minhas mãos a
transição democrática, passar o país de um regime autoritário para um regime
democrático. A tarefa me enchia de temor e de angústia, sobretudo porque eu
olhava para o tempo e não sabia o que seria o futuro.
Como já
disse, a transição, muitas vezes, destrói ídolos e lideranças – eu não era nem
uma coisa, nem outra. Mas hoje tenho um profundo orgulho de que a democracia
não morreu em minhas mãos. Ao contrário, criamos uma sociedade democrática, com
afirmação dos direitos do cidadão e das conquistas sociais.
Assim é
que, nesses 33 anos, posso recordar que me coube, juntamente com Alfonsín, a
tarefa histórica, de repercussão mundial, de retirar a América Latina da
corrida nuclear, esse problema que ameaça a humanidade. E vemos o quanto é
grave com o que ocorre hoje com a Coreia do Norte e a luta para que o Irã não
possua armas nucleares, sobretudo agora quando o presidente Putin anuncia que
tem a arma de destruição total – o míssil inalcançável, capaz de levar muitas
ogivas nucleares a qualquer parte do mundo sem ser interceptado.
Por outro
lado, também com o grande amigo e estadista Alfonsín, acabamos com a grande
rivalidade histórica entre Argentina e Brasil e criamos o Mercosul, que mudou a
face da América Latina e, se ocorresse nosso sonho, no futuro, se transformaria
no Mercado Comum da América do Sul.
Lembro
também que, com meu espírito de fé, fiz colocar em nossas cédulas de dinheiro a
expressão “Deus seja louvado”, que tentaram tirar, e o povo não deixou. O maior
programa de alimentação das crianças do mundo inteiro, o Programa do Leite, que
distribuía 8 milhões de litros de leite por dia; o Vale-Transporte, com que o
trabalhador anda hoje nos ônibus sem tirar do seu salário; o Vale-Alimentação;
a impenhorabilidade da casa própria; a universalização da saúde, com que todos
passaram a ter direito a assistência médica, quando antes o pobre não tinha nem
onde tomar uma injeção; a Fundação Palmares, para ascensão da raça negra; o
Conselho Nacional da Mulher; a lei de proteção às pessoas com deficiência; os
incentivos fiscais à cultura (Lei Sarney); a menor taxa de desemprego; a
Assembleia Nacional Constituinte; o crescimento econômico de cinco por cento ao
ano, até hoje não repetido; o 13° salário para funcionários civis e militares:
tudo isso aconteceu naqueles anos. E passamos de oitavo para sexto país na
economia mundial, com o terceiro maior saldo de exportação do mundo, só
perdendo para China e Alemanha.
Tempo de
construção. Os ventos da liberdade varreram o Brasil como nunca. E até hoje as
eleições livres, a plena democracia, os direitos do consumidor, da mulher, do
trabalhador, dos funcionários ficaram inscritos em lei, e vivemos uma das
maiores sociedades democráticas do mundo.
Minha
mulher teve razão ao lembrar-me aqueles dias: tenho a consciência de, neles,
ter ajudado o Brasil a crescer e democratizar-se.
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