sexta-feira, 6 de maio de 2022

UM MUNDO DE GENTE E MEMÓRIA - CRÔNICA DE ELOY MELONIO

 


Depois de quase três anos, decidimos dar uma chegada à Rua Grande, a mais famosa rua comercial do Centro Histórico de São Luís, capital do Maranhão — a tão conhecida Atenas Brasileira. E aí você pode se indagar: por que esse interesse por uma rua tão antiga?

Precisando comprar uma peça para sua máquina de costura, minha mulher teria de ir a uma loja que ficava numa rua a uns duzentos metros da Rua Grande. Então pensamos: estar no Centro da cidade e não ir à Rua Grande é como estar em Roma e não ir à Basílica de São Pedro. E, assim, partimos em direção Rua Oswaldo Cruz, nome mais moderno do mesmo logradouro.

Em princípio, suas dimensões não justificam o nome: não é tão larga e nem tão longa. É igualzinha à Rua da Paz e à Rua de Santana, suas vizinhas laterais. “Grande” vem da ideia de “principal”, ou seja, a mais movimentada ou mais popular de uma cidade, onde se desenvolve uma atividade mercantil variada e pulsante. Algo como uma “main street” que se vê nos filmes de Hollywood.

Um pouco de história não faz mal a ninguém, não é mesmo? A Rua Grande é uma das mais tradicionais de São Luís, constando em registros oficiais desde 1698. Nos tempos áureos da cidade, era a rua para compras e passeios — um shopping à céu aberto — e por lá circulavam as moças das famílias abastadas, exibindo a mais recente moda de Paris e Lisboa.

Inicialmente, a ideia era “circular” na redondeza. Ou — como se dizia antigamente — “descer e subir” a rua, pois já não fazíamos isso há muito tempo.

Mas, ao final da primeira etapa, uma surpresa comovente. Paramos numa calçada em frente ao Éden, cinema que, por várias décadas, ostentou a fama de melhor sala de espetáculos da cidade. De lá, percebi um grupo de turistas fascinados com a fachada do prédio que, hoje, abriga uma loja de roupas femininas. Fora a cor rósea, o visual é o mesmo do tempo em que o Cine Éden atraía cinéfilos, casais de namorados e paqueradores de plantão.

Por um instante, rememorei as tardes em que assistia a grandes filmes de Hollywood. Lembrei a “Sexta de Arte”, cuja sessão era às 22h, e que, por um bom tempo, trouxe mais luz e encanto às noites da cidade.

Foi no Éden que me emocionei com a história de “Ben-Hur”, a mensagem de “Os Dez Mandamentos”, a força de “Hércules”, os tiros de “O Dólar Furado”, a ousadia dos “Sete Homens e um Destino”. E me inspirei com os meus ídolos. Entre eles, Yul Brynner, Charlton Heston, Steve McQueen, Charles Bronson. Também não posso me esquecer das estrelíssimas Elizabeth Taylor e Sophia Loren. E de quebra, o “Canal 100” ( _tan_ _tan tan tan tan_ _tan_) depois dos trailers e antes da película principal, com o resumo noticioso da semana, que, para nós, chegava com uma ou duas semanas de atraso. Mas o que me fazia suspirar e gritar eram os passes de longa distância de Gérson (Botafogo-RJ), os dribles de Rivelino (Corinthians-SP) e os gols de Pelé (Santos-SP).

Saindo dessa tela de lembranças, pisei no palco da vida real e me misturei às centenas de formiguinhas nesse cenário privilegiado do varejo da nossa cidade. Tentando capturar as muitas cenas, registrei em áudio no meu celular o que me chamava a atenção. Mas, infelizmente, não tinha como dar conta de tudo. Por isso destaco apenas alguns dos momentos em que tive de escancarar olhos e ouvidos e sentir as batidas aceleradas do coração.

A Rua Grande não é uma “feira” no sentido estrito do termo, mas, se quiséssemos, teríamos comprado camarão seco, manga, ata (fruta do conde) tangerina, jambo. E o que mais você possa imaginar.

_Pode provar!_– antecipou-se um simpático camelô, dirigindo-se à minha mulher. E ela, sem hesitar, comprou um molho com alguns cachinhos de pitomba. E saiu feliz da vida: _crack, crack_.

Mais adiante, sentado num tapete no meio da rua, um homem com uma túnica hindu vendia carregadores de celular. Nesse instante, um barulho esquisito me fez olhar para trás. Ziguezagueando no meio do povo, um rapaz transportava uma panela de alumínio no bagageiro de sua bicicleta. Lambi os beiços e pensei: “Hum! Só pode ser feijoada ou mocotó”. O ciclista adentrou uma travessa à minha direita e sumiu no meio das barracas de lona.

Enquanto minha mulher se divertia numa loja de roupas, eu observava a muvuca que subia e descia, comprava e vendia. Aproveitei para conversar com a “cumade” de uma banca bastante sortida. Bom papo, ela sabia tudo sobre quase tudo. No topo do guarda-chuva que abrigava os produtos, um cartaz anunciava: APLICA-SE PELÍCULAS DE VIDRO. De certa forma, a agressão à nossa língua me afetou. Mas, considerando a escrita (e a fala) de tanta gente das Letras e das Comunicações, não tive coragem de julgá-la pelo erro de concordância. Para ela, o importante era comunicar. E isso o seu anúncio fazia muito bem.

Logo ao lado, três “locutores” de porta de loja — como se estivessem num concurso de TV ao vivo — disputavam clientes com seus argumentos e suas potências vocais. Se tivesse de escolher o melhor, daria “dez” para cada um deles. Mas, pensando bem, melhor seria chamar o Cid Moreira para julgá-los.

Passando em frente ao Edifício Caiçara, uma brisa poética: _parada obrigatória, lembranças à flor da memória_.

O Caiçara era a principal referência no âmbito da Rua Grande (Antes ou depois do Caiçara?). Por um instante, muita coisa aflorou: a lojinha do térreo onde eu comprava de revistas a Chicletes Adams. Sem esquecer que ali também era o “camarote” dos paqueradores vespertinos. Enquanto passavam à sua frente, as moças diminuíam o passo, afiavam o olhar e caprichavam no rebolado. Entre elas, estudantes secundaristas exibindo seus uniformes e seu charme.

Finalmente, peço licença ao conterrâneo João do Vale porque também eu “tinha tanta coisa pra falar”, mas…

Eu e minha mulher já estamos com dia e hora marcados para a próxima incursão a essa selva de gente e memórias.

Eloy Melonio é professor, cronista, contista e poeta

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