quarta-feira, 7 de junho de 2023

UM HOMEM CHAMADO CAVALO - POR ELOY MELONIO

*Eloy Melonio

Será que existe alguém que nunca foi chamado — carinhosa ou depreciativamente — por um “nome” que não fosse o seu?

Na corrida presidencial de 2022, dois nomes subiram ao palco do circo político-eleitoral. E, sob um clima hostil, o mais ferrenho apoiador de um tentava “rasgar a jardineira” do outro: “E isso não é só um apelido não; ele é isso mesmo”.

Durante a tirania de Villegagnon, oficial naval francês (1558) que tentava estabelecer a França Antártica na costa brasileira — erradicada por forças portuguesas —, os protestantes franceses recém-chegados chamavam-no pelo infame epíteto de Caim, o filho de Adão e Eva.

E foi assim — num quase arroubo de saudosismo — que me veio a ideia de passear na praia dos apelidos. E tentar descrevê-los — segundo a intenção do emissor ou a reação do receptor — como "carinhosos", "pejorativos" etc. E eles são assim mesmo: ora nadam nas águas do bem; ora nas águas do mal. E não raro se escondem sob a onda do tanto faz.

Não se sabe ao certo quando surgiram, mas já fazem barulho há bastante tempo. Porque é da nossa natureza exaltar um amigo ou rebaixar um desafeto. Ou simplesmente destacar a imagem de alguém com um nome diferente. Se você duvida, é só perguntar ao Adamastor Pitaco.

Nunca me esqueci de um vizinho de sete anos que tinha a língua presa. Quando zangado com um amiguinho, não pensava duas vezes para soltar seu insulto preferido: “Fumaé!” (“Filho duma égua!”, em tradução livre). Sem hesitar, seus amigos logo o batizaram Fumaé. Quando encontro seus pais, sempre pergunto por ele. Depois da resposta, risos e gargalhadas. Nesse mesmo contexto, Careca e Calango eram pai e filho que geralmente esqueciam seus próprios nomes.

Juro que nunca vi Seu Jurará, mas ouvia falar dele. Homem simples, porteiro de uma escola pública. Os alunos descobriram seu apelido quando jovem, em sua cidade natal. E aí, sabe como é! À entrada da escola (no meio da multidão), três alunos conjugavam em voz alta o futuro do presente do verbo “jurar”, da primeira a terceira pessoa do singular. Ele cerrava os dentes, mas não brigava com os alunos. Talvez porque imaginasse que “apelido só pega quando a pessoa se zanga”. Nesse caso, prevaleceu o ingrato prazer de aborrecer o outro. E a "tartaruguinha", típica da baixada maranhense, entrou de vez na sua biografia.

Para alegria geral, existem os apelidos que não fazem sentido algum. Titoca, Lica e Amia são da praia familiar da minha esposa. E também os carinhosos ― dos parentes e amigos, das crianças e idosos ― geralmente evidenciando um afeto ou algo positivo. Canjoca era D. Arcângela, minha mãe; e Reizinho é o Artur (7 anos), filho de um casal de amigos.

Oportunistas de primeira linha, os políticos mudam o nome para ganhar mais destaque. Astro de Ogum (vereador), Ana do Gás (dep. estadual) e Bira do Pindaré (ex-deputado federal) são exemplos na minha cidade. E é a Lei 9.708/98 que lhes permite usar o apelido para completar ou modificar o registro original. Na tradição política, o nome certo é aquele que traz benefícios imediatos.

Não dá para esquecer os autoexplicativos: Zeca, Chico, Baixinho. Nem os pejorativos. Já-Morreu é “um vivinho da silva”, mas muito debilitado. E “Papa-anjo”, um marmanjo que só namora mocinhas na flor da adolescência.

Bonzinho e Deuserrô são exemplos de cunho humorístico e comportamental. O primeiro, aconselhado a parar ou desacelerar a bebedeira na mesa do bar, recusava-se a fazê-lo, justificando que ainda estava “sóbrio”. O segundo, uma menina serelepe dos meus tempos da Cohab-Anil (São Luís-MA) que vivia na rua com os meninos, empinando papagaio (pipa) e jogando bola. Não sei dizer se Deus realmente errou, pois essa é uma questão de foro teológico.

No filme “Um Homem Chamado Cavalo” (1970), John Morgan, um aristocrata inglês numa expedição em Dakota (E.U.), em 1821, é capturado por uma tribo Sioux, sendo escravizado e usado como animal de carga. Depois de conquistar a confiança da tribo por sua força e coragem, recebe o status de guerreiro e o nome de “Cavalo”.

Entre aqueles da minha memória afetiva, um é especialíssimo por causa de seu background. Carvão de Varinha, um garçom jovem e preto, ganhou esse apelido de um cliente por causa da cor de sua pele e da magreza acentuada. Mas isso nunca lhe ensopou o lenço. Porque o carvão só queimava entre um e outro. Anos depois, reencontrou o cliente em outro bar. Aproximou-se dele e o saudou: “E aí, doutor, tá se lembrando de mim?” Sem esperar a resposta, exclamou: “Sou eu, Carvão de Varinha!”. Acho que não preciso descrever esse reencontro.

E, por último, um trabalhador que fazia serviços para mim. Certo dia, atendi a sua ligação: “Quem é?” Ao que respondeu: “É Macaco, o pedreiro!” "Ah sim. Como vai?" E é claro que ― quinze anos atrás ou hoje ― eu jamais imaginaria que fosse um jogador do Real Madrid.

Feliz ou infelizmente, a folga dos apelidos está com seus dias contados. Os tempos são outros, e as relações comunicacionais, vigiadas por leis e redirecionadas por novos padrões de comportamento. Mesmo assim, eles continuam vivos e, em alguns casos, massageando egos ou causando estragos irreparáveis.

Enfim, que tal uma data para as festividades do Dia Internacional do Apelido? Pensei na mais espetacular de todas: 23 de outubro, nascimento de Pelé, o apelido mais antológico do mundo. Na lista dos convidados: Zico e Falcão, Neguinho da Beija-flor e Pretinho da Serrinha, Bochecha e Belo, Chitãozinho e Xororó. A notícia triste é a ausência confirmada de Edson Arantes do Nascimento.

Eloy Melonio é contista, cronista, letrista e poeta.

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