Eles
são eleitos para fazer leis e servir ao povo. Mas alguns se especializam em
usar o mandato para enriquecer. E não é pouca maracutaia, não. Vários deputados
estaduais, por todo o Brasil, usam uma coleção de fraudes para desviar dinheiro
público.
Uma
missa no interior do Brasil e uma pergunta: por que esse padre não deveria
estar aqui? Na periferia de uma capital, duas irmãs revoltadas. Sem saber, elas
eram usadas num esquema para desviar dinheiro público. E um desafio para as
leis da física: será que numa sala caberiam 71 pessoas trabalhando? E na hora
de dar explicações, uma atitude desesperada.
]
Esta
reportagem vai revelar o mapa da farra com o dinheiro público em assembleias
estaduais de todo o país. Tem vários tipos de golpe: inclusive adulterar
medidor de quilometragem de carros usados por deputados para forjar despesas
com combustível.
Flagrantes de como funcionava o esquema
A
investigação do repórter Giovane Grizotti começa pelo Rio Grande do Sul De
2011 até o ano passado, Neuromar Gatto era chefe de gabinete do deputado
estadual Diógenes Basêgio, o Doutor Basêgio, do PDT.
Sem
medo de mostrar o rosto, Neuromar Gatto revela que funcionários, vários deles
fantasmas, devolviam parte do salário ao deputado que os contratou.
Neuromar: Essas pessoas traziam até o gabinete os
valores e entregavam a mim, esse valor… Esses valores. E eu, naturalmente,
repassava ao deputado esses valores, como consta em gravações.
Grizotti: Você era o arrecadador?
Neuromar: Exato.
O
deputado estadual Doutor Basêgio é médico da cidade gaúcha de Passo Fundo e foi
reeleito, no ano passado, para o segundo mandato na Assembleia Legislativa do
Rio Grande do Sul.
Segundo
o delator, o próprio deputado controlava quanto cada funcionário tinha que
devolver. Uma lista mostra nomes e valores.
Neuromar: São documentos assim, com a letra dele,
mostrando R$ 800 mil que ele poderia tirar por ano.
Grizotti: E isso o que diz aí?
Neuromar: Esse aqui é o repasse. São as pessoas que repassavam pra ele num certo período.
Além
de documentos, Neuromar gravou flagrantes de como funcionava o esquema de
extorsão de assessores e uso de funcionários fantasmas.
Em
um vídeo, o assessor Álvaro Ambrós revela o quanto devolve de salário.
Neuromar: Quanto que tu repassa?
Álvaro: Três e pouco é a parte dele. Três e duzentos, três e trezentos.
Três
mil e trezentos reais diretamente para o bolso do deputado.
A
dona de casa Hedi Vieira era contratada como assessora parlamentar do Doutor
Basêgio. Sem saber que estava sendo filmada, ela admitiu que era fantasma.
Grizotti: Não trabalhava na prática?
Hedi: Na prática, não.
E
nem ficava com o salário.
Hedi: Eu não recebia dinheiro nenhum.
Grizotti: Mas não era assessora?
Hedi: Assessora só no papel.
Deputado Doutor Basêgio participa da contagem de dinheiro
O
publicitário Paulo Marins, responsável pelas campanhas eleitorais do deputado,
aparece num vídeo entregando dinheiro para o então chefe de gabinete, Neuromar
Gatto. Segundo Neuromar, foi mais uma devolução de salário, dessa vez da mulher
de Marins, que também estava empregada na assembleia. O publicitário disse que
o dinheiro era uma comissão devida a Gatto.
Neuromar: Eu não sei quanto é.
Marins: é 3-0-0-8.
Neuromar: isso.
Marins: Mil e vinte, mil e trinta.
O
número 3-0-0-8 significa R$ 3.008, exatamente o valor do contracheque da mulher
do publicitário em setembro de 2013; R$ 1.030 é o valor referente aos dias
trabalhados por ela no mês anterior.
Em
outro vídeo, a etapa final do esquema. Dentro do gabinete, na Assembleia do Rio
Grande do Sul, o deputado Doutor Basêgio participa da contagem do dinheiro
devolvido. E ainda reclama do valor.
Neuromar: Amanhã ela passa então R$ 1.500. E aí
quinta-feira mais os R$ 300, R$ 305 reais. Eu contei. Tudo em dez reais. Eles
só conseguiram sacar em dez reais.
Basêgio: Mas, meu Deus, que pobreza essa gente.
Basêgio: Mil reais?
Neuromar: Não, aí tem mil e quinhentos. Aqui, nesse envelope aqui tem mil e quinhentos reais. Depois aqui tem mais mil e quinhentos.
Um
dos maços de dinheiro o deputado separa na hora.
Basêgio: Esse eu vou precisar.
O
Fantástico procurou o deputado para responder às acusações.
Basêgio: Não, jamais existiu aqui dentro desse
gabinete, qualquer funcionário-fantasma. Existe transparência, existe controle.
E nós… Jamais chegou a nós dinheiro de qualquer funcionário. Porque eu não sou
falcatrua e tenho uma vida pra preservar.
Distorções nos pagamentos de salários a assessores
A
Organização Não-Governamental Transparência Brasil investigou os gastos de
todas as assembleias do país e descobriu distorções nos pagamentos de salários
a assessores dos deputados.
Um
exemplo: no Distrito Federal, no Rio de Janeiro, em São Paulo e em
Pernambuco, essa despesa é maior que na Câmara dos Deputados, em Brasília, que
só pode ter, no máximo, 25 funcionários por gabinete.
PE:
R$ 97.200
SP: R$ 125.996,30
RJ: R$ 171.491
DF: R$ 173.265
Câmara: R$ 92.053,20
SP: R$ 125.996,30
RJ: R$ 171.491
DF: R$ 173.265
Câmara: R$ 92.053,20
Veja
o absurdo no Amapá, onde não há limite de funcionários. Os 24 deputados têm,
incríveis, 2.653 cargos de confiança. E o tamanho do gabinete…
“Então,
um total de 30 metros quadrados, trabalhariam no máximo cinco pessoas”, avalia
o engenheiro-civil Carlos Eduardo Domingues da Silva, engenheiro-civil.
Tem
deputado com 71 assessores. O porta-voz da Assembleia do Amapá explica que os
deputados têm direito a manter assessores em todas as cidades do estado.
Grizotti: São 16 municípios?
Paulo Roberto Melen, consultor legislativo da Assembleia do Amapá: Sim.
Grizotti: Como justificar 71 assessores e como o espaço físico comporta?
Melen: Se eu tivesse cinco assessores em cada município, eu teria quantos?
Grizotti: Mas precisaria cinco assessores?
Melen: Mas se eu tivesse? Se eu tivesse?
Afinal,
onde estão os assessores parlamentares do Amapá? Um homem devia trabalhar na assembleia,
mas procurou o Ministério Público para contar que na verdade prestava serviços
particulares para um deputado.
Grizotti: O senhor não trabalhava no gabinete?
Homem que procurou o MP: Nunca entrei na assembleia. Era nomeado como assessor político e nunca peguei num papel.
Dezenas de funcionários-fantasmas em Alagoas
Esta
semana, o Ministério Público vai entrar com uma ação para diminuir os cargos de
confiança no Amapá.
“Vamos
ir à Justiça, pedindo que o judiciário anule essas contratações ilegais. E
nesses casos, logicamente, o Ministério Público irá pedir a devolução dos
valores, sim.”, afirma o promotor de Justiça Afonso Guimarães.
Em
Alagoas, dezenas de funcionários-fantasma foram descobertos, no ano
passado, pela Controladoria-Geral da União.
“Pessoas
humildes foram utilizadas para serem colocadas na folha de salários da
Assembleia Legislativa e receberem esse pagamento. Algumas conheciam, sabiam da
irregularidade, outras desconheciam essa irregularidade”, observa José William
Gomes da Silva, chefe da Controladoria Regional da União em Alagoas.
É
o caso de duas irmãs que ganham um salário mínimo por mês trabalhando
honestamente numa lavanderia comunitária de Maceió.
Fantástico: Dona Naudiene, a senhora trabalha na
Assembleia Legislativa?
Naudiene da Silva Quintino, lavadeira: Nunca. Não sei nem onde é. A única coisa que a gente sabe fazer é lavar roupa.
Naudiene da Silva Quintino, lavadeira: Nunca. Não sei nem onde é. A única coisa que a gente sabe fazer é lavar roupa.
Fantástico: Consta aqui nos registros que em dois meses a senhora recebeu mais de R$ 25 mil de salário.
Naudiene: Eita. Queria eu. Nunca vi nem tanto dinheiro assim na minha vida.
“Se
eu tivesse recebido eu não estava numa vida dessa, que só Deus aqui pra ajudar
a gente”, diz a lavadeira Sandra Maria da Silva.
Funcionária que ganhava sem trabalhar foge de repórter
O
Ministério Público de Alagoas investiga fraudes que podem chegar a R$ 150
milhões em cinco anos. E o ex-presidente da Assembleia, principal acusado,
atualmente é um dos responsáveis por julgar os desvios de dinheiro público.
“O
ex-deputado Fernando Tolêdo, que presidia a Assembleia Legislativa envolvido
nesses atos ilícitos comprovadamente, infelizmente foi premiado. Como
recompensa, foi nomeado para ser conselheiro do Tribunal de Contas”, conta o
procurador-geral de Justiça de Alagoas Sérgio Jucá.
“Eu
estando inocente, como tenho a consciência da tramitação, eu vou julgar isso
com muita isenção”, declara Fernando Tolêdo, conselheiro do TCE, ex-presidente
da Assembleia.
As
fraudes se espalham pelo país. O mesmíssimo esquema foi descoberto em Goiás,
onde existem 2,4 mil cargos de confiança e 41 deputados.
“Sem
precisar prestar o expediente, a pessoa, era oferecida a vantagem, dava o nome,
era contratada na assembleia e com a obrigação de uma vez no mês, em algum
local da cidade, ser devolvido o dinheiro”, afirma Lauro Nogueira,
procurador-geral de Justiça de Goiás.
Uma
dessas funcionárias que ganhavam sem trabalhar é a manicure Mércia Adriana
Dias. Em vez de trabalhar no gabinete, ela cuidava de seu salão de beleza.
Ao
ser abordada pelo repórter Giovani Grizotti, ela não quis dar explicações…
Abandonou os clientes e correu.
Fantasma que veste batina e reza missas
Ainda
em Goiás, tem fantasma que veste batina e reza missas – bem longe do gabinete
onde deveria trabalhar. É o padre Luiz Augusto, funcionário da assembleia desde
1980.
“Fantasma
não tem carne e osso como eu tenho”, diz o padre Luiz Augusto Ferreira da
Silva.
Esta
semana, o padre foi acusado formalmente pelo Ministério Público de ter recebido
mais de R$ 3 milhões de salário ao longo de 20 anos, sem trabalhar.
“Eu
mesmo não acreditei. Tive dificuldade de acreditar porque achei absolutamente
condenável do ponto de vista ético esta postura por parte de quem prega a ética
como um padre da Igreja Católica”, diz Fernando Krebs, da Promotoria de Defesa
do Patrimônio Público.
O
padre se defende dizendo que usa o salário de R$ 7,3 mil em obras sociais.
“E
eu pago para pessoas doentes que eu cuido. Sobra, então, R$ 6,3 mil pra comprar
algum alimento pra eles ainda. Então não tem nada de fantasma, não tem nada
ilegal nessa situação”, defende-se o padre.
O
Ministério Público pediu à Justiça a devolução dos salários e também acusou
ex-presidentes da Assembleia Legislativa de Goiás por permitir que o padre
recebesse sem trabalhar.
“Colocamos
o ponto eletrônico, o crachá funcional pra todos os servidores, o portal da
transparência, o conselho de gestão da frequência e da folha de pagamento”,
afirma Helio de Souza, presidente da Assembleia Legislativa de Goiás.
Festival de notas frias
Outro
foco de desvio de dinheiro público envolve a chamada verba indenizatória, que
serve para reembolsar as despesas dos deputados.
“Em
algumas assembleias não é necessário sequer apresentar comprovante fiscal da
verba indenizatória, que devia ser para indenizar um gasto já efetuado”, acusa
Natalia Paiva, diretora-executiva da Transparência Brasil.
Em
muitas assembleias do Brasil é um festival de notas frias, empresas de fachada,
serviços nunca prestados. Veja esse exemplo do Amapá: a dona da agência de
viagens, que não está envolvida no esquema, não sabe como notas fiscais da
empresa dela foram parar na prestação de contas de cinco deputados.
Fantástico: A senhora reconhece essas notas fiscais como
tendo sido preenchidas pela senhora?
Neucila Martins Nery, empresária: Não. De forma alguma.
Promotores
do Amapá investigam fraudes que, em apenas dois anos, podem passar dos R$ 50
milhões. Até empresa em nome de morto foi usada para deputado embolsar verba
que deveria ser usada para locação de veículos.
“Ele
morreu no dia 14. Tem uma nota que foi tirada 15 dias depois da morte dele.
Começo de janeiro. O meu irmão já tava morto não tinha como assinar. Como é que
um morto vai assinar?”, disse uma pessoa não quis se identificar.
Mas
mesmo quando as notas não são frias, a verba pode ser fraudada.
Marcadores de quilometragem são fraudados no RS
No
Rio Grande do Sul, os 55 deputados receberam mais de R$ 4,5 milhões para rodar
mais de 8 milhões de quilômetros, o equivalente a 10 viagens de ida e volta até
a lua. Parte do valor a ser pago aos deputados é controlado pelo medidor de
quilometragem dos carros. O ex-chefe de gabinete, que você viu no começo da
reportagem, conta que o marcador de vários carros é fraudado em oficinas
mecânicas.
Grizotti: Quantas vezes você levou o carro pra fazer a
adulteração?
Neuromar: No mínimo umas seis, sete vezes. Então, aí você joga pra cima essa quilometragem lá.
Neuromar: No mínimo umas seis, sete vezes. Então, aí você joga pra cima essa quilometragem lá.
A
pedido do Fantástico, ele foi até a oficina onde tudo acontece. Repare que,
antes da adulteração, o carro marca 75 mil quilômetros. Na oficina, Neuromar
pede ao mecânico para aumentar o medidor em 5 mil quilômetros. Enquanto
trabalha, o mecânico confirma que a prática é comum. Minutos depois, o
resultado no painel: 80 mil quilômetros.
Grizotti: Alguma vez já aumentou a quilometragem de
carro aqui?
Mecânico: Também não.
“Isso
é uma vergonha. E quem cometeu esse tipo de crime, sendo comprovado, tem que
pagar por isso”, declara Edson Brum, presidente da Assembleia do Rio Grande do
Sul.