A Lei Complementar Federal n.º 195/2022, nomeada “Paulo Gustavo” em memória ao ator que faleceu na pandemia de COVID-19, oferece o maior investimento cultural já realizado na história do Brasil. Assim como a Lei Aldir Blanc 1, tem a missão de alcançar fazedores, trabalhadores, microempresas, pequenas produtoras e demais agentes que têm o setor das culturas e das artes como profissão, mas que não acessam as políticas culturais de showmícios de estados e prefeituras, leis de incentivo e projetos que priorizam o marketing empresarial, que monopolizam praticamente todo o capital investido em cultura no país. O Decreto n.º 11.525/2023, que regulamenta a referida Lei, coloca como prioridade a oferta de produtos e serviços culturais a escolas e universidades públicas, associações comunitárias, profissionais da saúde e pessoas em situações de vulnerabilidade social.
O Ministério da Cultura (MinC), de volta após o desmanche institucional da Cultura em nível Federal, reforça que a Lei Paulo Gustavo possui flexibilidade, permitindo atender às diferentes realidades culturais de um país tão heterogêneo como o Brasil – tanto comunidades ribeirinhas da Amazônia, artesãos do Centro-Oeste, repentistas do Nordeste quanto artistas graduados da região Sul devem ter condições de isonomia para acessar os recursos. Contudo, essa mesma “flexibilidade” também dá margem, infelizmente, para usos indevidos e oportunistas da Lei. E nesse último caso, cabe denunciarmos a triste situação de alguns municípios do interior do Maranhão.
A Lei Paulo Gustavo recomenda em seu Art. 4º, § 1º, a realização de consultas públicas para que editais e demais instrumentos de gestão sejam feitos através da parceria entre poder público e sociedade civil, procurando atender aos mais diversos contextos de criação, difusão e manutenção de produtos culturais. Entretanto, há municípios que sequer fizeram essa consulta, e outros que ao fazê-la, não as levaram em consideração de fato, subestimando a competência dos próprios fazedores de cultura locais. Certamente por esta mesma razão, preferiram terceirizar a gestão da Lei Paulo Gustavo, mecanismo previsto no Capítulo X do Decreto, limitado a 5% do valor total a ser recebido pelo município.
Nesse contexto, uma empresa sediada na Bahia, cuja principal atividade do CNAE é prestar serviços de transporte de passageiros e locação de automóveis com motorista, está sendo contratada por diversas prefeituras para operacionalizar a Lei Paulo Gustavo. Em Bacurituba, ela fechou em R$ 47.400,00 (Fonte: Diário Oficial da FAMEM, Ano XVII N.º 3.179), sendo que esse município recebeu o montante total de R$ 66.906,16 (Fonte: MinC), claramente excedendo os 5% de operacionalização permitidos ao município: R$ 3.345,01. A mesma empresa foi contratada por Pedro do Rosário, por meio da antiga e revogada Lei de Licitações n.º 8.666/1993 – a atual é a n.º 14.133/2021 – mediante valor global de R$ 240.400,00 (Fonte: Diário Oficial da FAMEM, Ano XVII N.º 3.165), próximo à totalidade dos R$ 240.719,67 que o município tem direito. Dentre as fontes que constam em mecanismos de transparência pública, consta outro contrato da mesma empresa com Magalhães de Almeida, orçado em R$ 138,400,00 e cuja fonte provém do montante de R$ 138,399,96 que o município receberá do Audiovisual – Art. 6º da Lei Paulo Gustavo.
Não se sabe se os gestores públicos desconheciam a Lei Paulo Gustavo e o Decreto, deixando de atentar para o limite de 5% da operacionalização. O MinC promoveu diversos cursos de capacitação online e presenciais, a fim de esclarecer dúvidas sobre o processo. Essas informações são cruciais, pois constam denúncias de gestores públicos municipais da Cultura junto ao Conselho Estadual de Cultura (CONSECMA), durante a Lei Aldir Blanc, sobre pressão de produtoras para fechar contratos diretamente com os municípios, passando por cima do interesse público da distribuição dos recursos via editais, auxílios ou outras ferramentas próprias da gestão. De qualquer forma, os contratos mencionados vão de encontro à legislação vigente, e deve(ria)m, portanto, ser anulados.
Com relação ao trabalho que a dita empresa tem feito na construção de políticas culturais de municípios maranhenses, além do claro e evidente despreparo com que os seus funcionários conduziram as escutas públicas em municípios como Santa Quitéria e Codó – esse último um polo cultural ímpar no Maranhão – agentes culturais presentes afirmaram que os editais já eram apresentados em versão praticamente definitiva, o que praticamente inviabiliza a abertura para proposições de quem realmente faz cultura naquele município. Dentre os questionamentos, havia a ênfase dada em fomento a quadrilhas juninas mesmo em municípios que não possuem essa tradição, além de valores altos definidos para produções audiovisuais que permitem inscrições de proponentes com residência fixa em outros estados do país – numa clara tentativa deles mesmos tentarem participar futuramente dos certames, por meio de outro CNPJ. E pela lógica com que os contratos foram assinados, a empresa receberia ou já havia recebido os recursos do município, sendo que quanto mais propostas dos fazedores de cultura locais forem reprovadas, mais verba irá sobrar para a própria empresa; daí já se vê seu interesse direto em fazer editais da maneira mais burocratizada possível, desmotivando os agentes culturais locais a se inscrever.
Devido à falta de transparência com que o processo tem sido conduzido em várias localidades, não é possível averiguar quantos municípios fecharam contrato com a referida empresa. Entretanto, com base em afirmações que os próprios funcionários forneceram em escutas públicas realizadas em Codó e Santa Quitéria, eles estariam atuando em mais de quarenta municípios do Maranhão e Piauí. Assim, é oportuno que o MinC e outras entidades fiscalizadoras, como a Controladoria Geral da União (CGU) e o Ministério Público (apesar desse último não ter demonstrado interesse em assuntos ligados às Culturas e às Artes no Maranhão), ficarem atentos para esse tipo de ingerência que precisa ser evitado na futura Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura, evitando maiores prejuízos a quem realmente é responsável pela construção e manutenção do patrimônio cultural brasileiro.
Atualização recente: a Prefeitura de Santa Quitéria do Maranhão publicou agora à tarde seus dois da Lei Paulo Gustavo. Além das irregularidades – que, entre outras, ancora o edital na revogada Lei de Licitações n.º 8.666/1993 e, no edital de Audiovisual, exige propostas de bandas, solos e grupos musicais que nada têm a ver com o Art. 6 da Lei Paulo Gustavo – no item 11.3, esqueceram de remover a palavra “Codó” – falha que comprova definitivamente ser um trabalho da mesma empresa: