Por José Sarney
Ao longo da História da Humanidade a casa — o espaço pessoal de uma família, fosse de pedra ou de couro, fixo ou móvel — sempre teve um caráter de refúgio, desde para o visitante, acolhido com o que se tinha de melhor, até à garantia de sua inviolabilidade. A Constituição acolheu esse princípio, estabelecendo que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador”.
O que me levou a fazer política foi a ideia de que a sociedade só se sustenta — o Estado só é viável — se houver justiça social. Para isso eu sabia que tinha que conhecer a vida das pessoas mais humildes; e, graças a Deus, nunca me afastei delas. Testemunhei pessoalmente os seus problemas, desde a falta de trabalho para ter o pão de cada dia, até o problema de como sobreviver sem ele, o pão nosso — e é como um golpe no peito que ouço que 33 milhões de brasileiros estão passando fome.
Vi assim como era importante para os que tinham uma casa, muitas vezes minúscula, a segurança de ali poderem viver, se refugiar, se reunir, ser feliz ou sofrer junto aos seus. E a tragédia que era quando a perdiam, muitas vezes postos fora por dívidas reais ou presumidas.
Então, quando Presidente da República, instituí a regra da impenhorabilidade da casa própria, da residência da família. Acrescentei ainda como impenhoráveis salários, bens de trabalho e as pequenas propriedades autossustentáveis — uma lembrança dos Homestead Acts, que Lincoln e outros líderes americanos fizeram a partir de 1841, que subsistem hoje como um modo de vida em cumplicidade com a natureza.
Perdi a conta do número de vezes que alguém me agradeceu por ter evitado assim que perdesse seu bem de família. Tendo me mantido na política ainda por muitos anos, tive ocasião de defender o princípio com as armas da ação parlamentar, levantando a voz para evitar qualquer tentativa de regredirmos ao capitalismo selvagem.
Foi com enorme surpresa, por isso, que vi a notícia de que a Câmara dos Deputados aprovou, silenciosamente e de maneira inacreditável, projeto de lei — o PL 4188/21 — criando um “marco legal de garantia de empréstimos”, isto é, protegendo os que têm dinheiro para emprestar em detrimento dos que precisam do dinheiro para viver. Faltou aos deputados a sensibilidade de imaginar as repercussões para os mais pobres, sobretudo num momento tão difícil para nosso País.
Para tomar a casa das pessoas, o governo propôs que sejam criadas umas tais de “IGGs”, instituições gestoras de garantias, aumentando o difícil caminho para se chegar aos empréstimos sob o pretexto de dar maior segurança aos credores. A notícia da Agência Câmara descreve singelamente uma coisa tão feia: “Quanto ao único imóvel da família, o texto aprovado muda a lei sobre a impenhorabilidade de imóvel (Lei 8.009/90) para permitir essa penhora em qualquer situação na qual o imóvel foi dado como garantia real, independentemente da obrigação garantida ou da destinação dos recursos obtidos, mesmo quando a dívida for de terceiro (um pai garantindo uma dívida do filho com o único imóvel que possui).”
Debatendo uma dessas tentativas de acabar com a impenhorabilidade da casa própria, há alguns anos, lembrei o Sermão dos Peixes, feito pelo Padre Vieira. Ele diz aos peixes que eles têm um grande defeito, que é os peixes grandes comerem os pequenos. Se os pequenos comessem os grandes, bastava um grande para alimentar muitos pequenos. Mas, como o grande come os pequenos, milhares e milhares de pequenos são devorados pelos grandes.
Assim seria com essa lei, se fosse aprovada: com ela se beneficiariam os que penhoram casas, aqueles peixes grandes que comem os peixes pequenos. Tendo sido senador por 40 anos, apelo ao Senado que examine a gravidade do assunto, com confiança de que jamais deixará passar esse projeto, tão prejudicial ao nosso povo.
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