Por José Sarney
O Brasil levou muito tempo para alcançar um dos pontos essenciais da democracia, que é o voto. Durante o Império, o voto foi sempre objeto de ansiedade e preocupação. O primeiro ponto era a questão de quem a ele tinha direito. Desde a eleição para a Assembleia Constituinte o voto foi censitário, isto é, restrito a quem preenchia certas condições econômicas. A Constituição de 1824 manteve o critério: eram eleitores todos os cidadãos, excluídos os menores de 25 anos, os filhos família, os criados de servir, os religiosos e os que não tivessem renda mínima de cem mil réis, para as assembleias paroquiais; para deputados e senadores excluíam-se ainda os que não tivessem renda de 200 mil réis os libertos e os criminosos. A Constituição não falava em mulher ou escravo — mas a exclusão era inequívoca. O sistema era de graus: elegiam-se os eleitores, estes elegiam os parlamentares. Em meados do século foi criada a eleição por círculos, a primeira forma de voto distrital. Em 1875 se tentou fazer representação minoritária, com a Lei do Terço, em que os eleitores só votavam em 2/3 das vagas. Finalmente, já no final do Império, veio a eleição direta. E reapareceu o voto secreto, que existia no Código Filipino.
A República chegou com um retrocesso: a invenção do voto a descoberto facultativo — ou melhor, obrigatório, já que raros eram bestas ao ponto de contrariar o governo. Essa invenção extraordinária era simples: depois do voto o eleitor recebia um atestado de que tinha votado na pessoa certa. Os resultados das eleições presidenciais, assim, foram de quase unanimidade — em torno de 95% — durante toda a República Velha. Já os votos para o Parlamento passavam pelo crivo da Comissão de Verificação de Poderes, pela qual Pinheiro Machado decidia quem era cooptado. A Revolução de 1930 veio sem voto. Em 1932, Getúlio escolheu seu antigo adversário, Assis Brasil, para fazer o primeiro Código Eleitoral. Foi um grande passo, mas lançou o voto proporcional uninominal, reinvindicação que fazia há décadas e a cuja longa sobrevivência devemos o problema da proliferação de partidos.
Desde o Império, se necessário, numa regra não escrita, baixava-se o cacete, maneira poderosa de decidir quem tinha mais votos, pois o número dos dispostos a ter o lombo quebrado sempre tendeu a ser menor que o dos que procuravam preservá-lo.
Eu fui fiscal eleitoral numa seção do interior. A noite da véspera da eleição passou entre copos emborcados e tiro para o alto. Às duas da manhã me acordaram para ir com um grupo ao juiz. Este surgiu pálido e em pânico. O líder do grupo, com dois revólveres à cinta, perguntou: — “O senhor está com nós ou contra nós?” O juiz, trêmulo: — “’Tou com nós!” Dias depois a apuração deu empate.
Nossa democracia tem que superar o impasse do sistema partidário: é necessário que os partidos tenham propostas e que estas resultem de processo democrático interno. Infelizmente o que temos é um conjunto de partidos disputando não os centavos, mas os milhões dados pelo Tesouro e sem qualquer vislumbre de uma ideia que não seja a do poder pelo poder. Mas do lado do voto as leis eleitorais avançaram. Eu mesmo, ainda deputado, apresentei projeto para tornar oficial o alistamento eleitoral, um dos graves problemas. A informatização da Justiça Eleitoral — durante meu governo o TSE implantou o cadastro eleitoral informatizado — e sobretudo a introdução da urna eletrônica, em 1996, foram os passos decisivos para acabar com as fraudes. Desde então as eleições brasileiras se realizam com a segurança de que o voto corresponde exatamente à vontade do eleitor.
Nossa democracia se consolidou e para isso foi muito importante a urna eletrônica.
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