NOVA ELITE CAIPIRA
Sobre uma curiosa inversão histórica na
ordem da cultura
No título do famoso
filme Tropa de elite (José Padilha, 2007), o termo elite
referia-se ao grupo de policiais especialmente treinados para operações muito
complicadas. A “elite” que era a tropa tinha um significado de especialização,
superioridade, hierarquia, entendidas tecnicamente. Na contramão, quem
utiliza o termo em outros contextos refere-se, em geral, a: “donos do poder”,
“classe dominante”, “oligarquia”, “dominação política”, “dominação econômica”,
“classe dirigente”, “minoria privilegiada”, “formação de opinião”, “dirigente
cultural”. “Elite” é termo usado para designar as vantagens petrificadas de
“ricos” e “poderosos” que comandam massas, as maiorias anódinas que, não tendo
poder, parecem não ter escolha quanto a deixar-se conduzir.
Usado em oposição a povo, à democracia, à simplicidade das gentes, à
cultura popular, o termo é usado para designar grupos econômica, cultural e
politicamente dominantes. Seu uso atual, no entanto, erra o alvo em relação à
cultura, desde que vivemos uma curiosa inversão cultural.
Morfina estética
Há dois tipos de caipira. Um que era o oposto da elite, como o simpático
Jeca Tatu, e outro, que é a própria nova elite, o cantor da dupla sertaneja
que, depois de um banho fashion, fica pronto para o ataque às massas, mesmo que
seu estilo continue sendo o do chamado “jeca”. Refiro-me ao “caipira” ou “jeca”
como figura genérica, mas poderia também falar da moça cantando seu axé music,
seu funk, que, de repente, não é uma “artista do povo” como quer fazer parecer
a indústria que a sustenta (e atormenta o povo como F. Bacon dizia que era
preciso tormentar a natureza para receber dela o que interessava à ciência),
mas é a rica e poderosa estrela – e objeto – da indústria cultural.
Sem arriscar um julgamento quanto à qualidade estética dos produtos do
mercado, é possível, no entanto, questionar sua qualidade cultural e política.
Muitos defendem que “é disso que o povo gosta”, enquanto outros dirão que o
povo experimenta uma baixa valorização de si ao aceitar o que lhe trazem os ricos
e poderosos sem que condições de escolha livre tenham sido dadas, o que
surgiria de uma educação consistente – e inexistente em nosso contexto. A
injeção diária de morfina estética que o povo recebe não permite saber se
o “gosto” é autóctone ou externamente produzido.
De qualquer modo, no mundo da nova elite, a regra é a adulação das
massas. Qualquer denúncia ou manifestação de desgosto em relação ao que se
oferece a elas é sumariamente constrangida.
Mais curioso é a inversão culturalmente curiosa que está em cena. No
lugar das extintas “elites culturais”, sobem ao podium as
novas estrelas que permutam o antigo poder do artista e do intelectual pelo
poder do jeca para quem a arte não é problema. Se o intelectual é melhor
ou pior do que o jeca não é a nossa questão. Questão é desvendar o seguinte:
num quadro em que professores recebem um torturante salário de fome, em que
intelectuais sérios precisam pedir desculpas por existir, em que escritores
permanecem perplexos sem saber se sobreviverão em um país de analfabetos, em
que artistas-não-jecas recebem pareceres humilhantes de agências e ministérios,
enquanto todos estes são questionados quanto a seu papel social e sua
contribuição para a sociedade como se fossem um estorvo, ninguém pergunta sobre
o papel cultural da elite caipira: Xuxas e Sangalos, Claudias Leittes e Luans
Santanas, Micheis Telós – para citar exemplos – são livres para exercitar um
autoritarismo sutil, covarde e sedutor na condução das massas à imbecilização
planetária. Politicamente correto é elogiar a imbecilização como se ela não
estivesse em cena impedindo a reflexão. O autor da crítica à nova elite sempre
pode ser xingado de “elitista”, afinal, a elite jeca não tem outro argumento
senão o disfarce.
marciatiburi@revistacult.com.br