domingo, 17 de março de 2024

RECEITA DE MULHER - POR ELOY MELONIO

 


*RECEITA DE MULHER*

Maria, Zilda, Dulce, Arcângela, Fernanda, Braga, Elza...

Que me perdoe o Vinicius, mas aqui vai uma receita de dar água na boca de qualquer poeta. Isso porque a mulher não é apenas um rosto bonitinho, quadril largo e pernas torneadas — aspectos físicos sutilmente captados pelo olhar masculino. Não, e não.

A mulher é mais que as “nádegas” e “saboneteiras” que o poetinha admirava. É óbvio que ele falava em nome de um olhar típico do boêmio de sua época. E está perdoado por isso, porque seu poema “Receita de Mulher” (1959) é uma estupenda peça poética. Mas longe de representar, em sua plenitude, as mulheres.

É inegável que a mulher ocupa espaço privilegiado na poesia, na música e nas cenas de qualquer love story. E, aproveitando esse potencial, o marketing dos negócios associou seu _sex appeal_ ao imaginário coletivo dos homens (e também das mulheres). Se uma famosinha curte uma determinada marca de cerveja, muitas mulheres vão querer seguir sua preferência.

Uma influência arrebatadora, não é mesmo?

Mas o que existe além dessa imagem sensual? Para os especialistas, uma gama de qualidades e potencialidades. É apaixonada pelo que faz, não tem medo de assumir riscos, quer evoluir na carreira. E está, hoje, fortemente representada no mercado de trabalho: a cientista, a produtora cultural, a deputada, a policial, a empresária do agronegócio.

Além de tudo isso, pode-se destacar a quase esquecida “companheira” — expressão bíblica para a primeira mulher, que, muitas vezes, mesmo trabalhando fora, é dona-de-casa exemplar.

E aqui se faz necessário falar da mulher cidadã, engajada em várias frentes. Que luta pelos seus direitos e que, corajosamente, representa outras mulheres. Essa, em geral, não está nem aí para o estereótipo do poeta carioca, embora muitas se encaixem perfeitamente nessa idealização dos poetas românticos.

Hoje, quando se destaca na sociedade, a mulher é uma dedicada representante da luta pela igualdade de direitos. Infelizmente, o mundo das redes sociais ainda não foi capaz de valorizar essa voz empoderada. E isso, como diria Roberto Carlos, por causa de um “detalhe tão pequeno”: quem ainda faz as leis são esses sujeitos que se dizem seus amigos ou companheiros. Felizmente, elas sabem que um longo caminho ainda as separa do “oásis” da igualdade. Mas já conseguem vislumbrar, no bom sentido, a mesma “sombra e água fresca” que os homens sempre desfrutaram.

Nas últimas décadas, o palanque político mudou muito. Nesse novo cenário, as mulheres ganharam espaço no debate em torno de questões essencialmente femininas como feminicídio, assédio sexual, violência doméstica. Não sei dizer o número de atrizes nesse palco, mas sei que sua representatividade se torna cada vez mais expressiva e mais consistente.

Nosso século se orgulha de ter empoderado duas jovens que chamaram a atenção do mundo com seu grito de indignação: a paquistanesa Malala Yousafzai, a mais jovem vencedora do Nobel da Paz, em 2014 e a “pirralha” sueca Greta Thunberg, que, aos 16 anos, foi escolhida “Person of the Year/2019” pela Time. Aliás, essa honraria — não é demais lembrar — era, até pouco tempo, deferência midiática exclusiva aos homens.

 A mulher hoje pisa e repisa os modelos impostos pelo patriarcalismo dominante. Já destronou o famigerado "sexo frágil" e o cambaleante "por trás de um grande homem". E consolida sua posição em busca de mais direitos, mais reconhecimento, mais oportunidades. Mas ainda tem muitas pedrinhas para tirar do meio do caminho.

No universo das redes sociais, a panela ferve repleta de argumentos e posições. E é por lá que, hoje, caminha a humanidade. Em muitas situações, as trincheiras são necessárias. Mas, como já disse, bem melhor que a guerra é o entendimento. Nesse contexto, a mulher parece ter o perfil ideal para entrar nessa lida democrática. Palavras não lhe faltam.

E quanto às “mulheres” da primeira linha desta crônica?

Apesar da escolha aleatória, são pessoas reconhecidas por sua representatividade. Se adicionarmos um título, nome ou sobrenome, facilmente serão reconhecidas: Maria “da Penha”, Zilda “Arns”, “Irmã” Dulce, (...), Fernanda “Montenegro”, “Ana Maria” Braga, Elza “Soares”.

Essa lista não significa que essas são as mais representativas. O que importa aqui é a sua atitude diante dos desafios da vida, da sociedade e do mundo.

Uma delas você certamente não conseguiu identificar. E por que está nessa lista? Porque, mesmo anônima, foi, para a sua família, exemplo de força, caráter, dignidade.

Essa mulher — física e socialmente — está longe do perfil decantado por Vinicius de Moraes. Era uma guerreira. Acordava cedo para preparar os filhos para a escola. Fazia de tudo em casa. E criou cinco de seus nove filhos. Suas nádegas não eram bonitas, pois se sentava no chão para quebrar coco babaçu e, assim, ajudar na renda da família. Em vez de saboneteiras, os ombros fortes de carregar tanto peso. E as mãos calejadas de lavar roupa com sabão em barra. Uma incontestável amostra das milhões de mulheres que habitam os mais precários cantos deste país.

Seus predicados: mãe e dona de casa exemplar e — acima de tudo — virtuosa.

Arcângela "Melonio", mulher qualificada a figurar em qualquer lista de pessoas dignas e honradas. A eterna companheira de vida e túmulo de Seu Manoel Rodrigues, meu pai.

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*Eloy Melonio* é membro da APB (Academia Poética Brasileira)

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