SOLIDÃO
DE CARNAVAL
O fim de semana chegou com aquela
manhã nublada e nada se transformava em alegria na residência de três apertados
cômodos. - Onde está aquele negrinho que
durante os cinco dias de carnaval se ouvia cantando nas rádios, se via nas
televisões, fazia os mais belos e alegres sambas para escolas e blocos, era o
rei das marchinhas, era o mais cobiçado pelas mulheres, frequentava os melhores
bailes, era chamado para as festas particulares, sua companhia era bastante
disputada pelos amigos? - Onde está aquele negrinho que já saía pela manhã com
seu cavaquinho, com seu violão, com seu pandeiro e logo estava enturmado, todo
sujo de pó, de maisena, a cheirar lança perfume e beber todas? Se perguntou
depois de um banho frio, olhando em um espelho antigo e passando a mão na barba
grande, grisalha e por fazer. Bocejou e
mirou na virtualidade do espelho, a realidade que lhe espreitava alí, bem alí, a menos de um palmo do seu nariz.
De praxe, passou o café, ligou a TV e
em um copo, desses de massa de tomate, tomou o primeiro gole de muitos que lhe
saciariam durante o dia. Pegou o violão, deitou na sua velha rede, mas os dedos
insistiram em não tocar nas cordas, insistiram em não fazer qualquer nota. – Já não sou mais o mesmo, disse pra si
e degustou bem devagar cada palavra, alternando com um gole de café.
Abriu a bolsa, conferiu o pouco
dinheiro e mentalizou a comida daquele feriado prolongado. Andava pelo pouco
espaço que restava em seu “moquifo” e olhava sempre para o celular, na
esperança de uma ligação de um amigo ou de sua amada, que já não via há dias.
Guardou o violão, desligou a TV na
intenção de ouvir a voz do silêncio que agora lhe faria muito bem, mas por
ironia, alguém na vizinhança já estava no clima e bem alto, ouvia na vitrola, um
disco com os clássicos dos antigos carnavais e como uma punhalada no seu peito,
ouviu o velho sucesso: - Com dinheiro ou
sem dinheiro, ôôô, eu brinco ... Deu um sorriso no canto da boca e falou em
seu interior. – É, os tempos são outros.
E vagarosamente ruminou toda a sua desgraça e desventura.
Os dias passavam vagarosamente em um
fevereiro despretensioso e enfadonho, de tardes molhadas e cada noite mal
dormida, trazia o alívio na manhã, dos poucos pesadelos que insistiam em lhe
fazer companhia, na solidão do quarto que reclamava do frio e velava o ator
coadjuvante, protagonista de cenas mórbidas e desinteressantes. – Acho que envelheci, acho que envelheci, repetia
o negrinho balançando a rede impulsionada pelos pés que alternadamente batiam
na parede.
Nenhum telefonema da sua mulher amada,
nenhum amigo lhe procurou e já era terça-feira de carnaval. Chovia muito.
Cumpriu a rotina, acordou, agradeceu a Deus, levantou, tomou seu banho frio, foi
até ao velho espelho e se viu um monstro, o rosto coberto por cabelos. Pegou seu
antigo barbeador, colocou uma lâmina nova, espumou todo o rosto com sabão e
quando posicionou o aparelho em baixo do queixo, pensou: - Pra que vou me barbear? Pra quem vou me barbear? Que motivos tenho
para isso? Com interrogações vazando pelos poros, lavou o rosto e foi para
a cozinha. Passou um café fraquinho, pois o pó que restava era muito pouco e,
se não saíra de casa durante quatro dias, não seria na terça-feira que faria
isso para comprar café, ainda mais debaixo daquela chuva.
Não ligou a TV e nem pegou o violão.
Deitou-se e com o frio, adormeceu em um sono pesado. Acordou depois do meio dia
com uma barulheira infernal. Já não chovia mais. Era um vizinho que ligou seu
som bem alto na porta de casa e toda a sua família foi pra rua fazer a festa, e
musicas de péssima qualidade troavam fazendo o negrinho se sentir muito pior,
talvez quisesse ouvir Aurora, Cidade Maravilhosa, Quem sabe, sabe, Me dá um
gelinho aí ou mesmo um bom samba como Amélia ou Emília.
A tarde passava cheia de sons,
batucadas, gritos que invadiam o aposento do negrinho entupindo seus ouvidos e
lhe causando grande arrelia. Aquele confinamento lhe fazia muito mal, mas era a
realidade que lhe restava naquele último dia de carnaval. A noite chegou,
preparou um macarrão rápido com um ovo e uma salsicha, comeu, tomou um bom copo
d’água e foi para a frente do espelho escovar os dentes. Mirou-se por um bom
tempo com a escova entre os dentes e a bochecha e tentou não pensar em nada.
Deitou em sua rede, fez suas preces, pegou
um livro que ganhou de sua amada e começou a ler. Em pouco tempo adormeceu.
Sonhou com os seus olhos verdes, sua pele branca, seus cabelos molhados de mar
e acordou assustado, já era alta madrugada e chovia muito.
Levantou, tomou um copo d’água, pegou
o violão, uma caneta e o seu caderno e compôs a mais triste canção que já foi
feita no mundo. Abriu a porta e saiu naquele temporal cantando na madrugada de
quarta-feira de cinzas, a solidão e a tristeza de um carnaval que lhe encharcava de frio e que descia pelas
sarjetas.
Conto escrito por Zé Lopes
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