Grades de ferro, muros de cimento e cercas
de arame farpado mantêm longe da visão dos brasileiros um negócio da China para
políticos e empresários: o fornecimento de marmitas para a maioria dos 550 mil
presos no País, que possui hoje a quarta maior população carcerária do mundo.
Uma parte das empresas contratadas nem sequer paga funcionários, pois os presos
trabalham na cozinha dos presídios, mas cobra do poder público pelas refeições
fornecidas preços até duas vezes superiores aos praticados do lado de fora.
Para quem simpatiza com a tese de que os detentos não merecem ser bem tratados,
há outro dado: esse sistema ineficiente e corrupto consome, no mínimo, 2
bilhões de reais por ano em impostos.
Entregues, com transporte pago pelo
Estado, em delegacias, cadeias e presídios, as tradicionais “quentinhas” em
embalagens de alumínio são alvo constante de queixas ao Ministério Público
Federal (MPF) pelo mau cheiro, aparência, presença de insetos e alimentos
fora do prazo de validade. Como se não bastasse, os contratos são renovados sem
nenhum governante, independentemente do partido, parecer interessado em
rompê-los. Um provável motivo: empresas de marmitas são importantes doadoras de
campanhas eleitorais.
Não à toa, a alimentação é, ao lado da
tortura e do direito à visita de familiares, uma das três principais causas de
rebelião nas penitenciárias brasileiras. Há uma quarta razão, mais perversa e
responsável pelo fortalecimento das facções que dominam os presídios. Embora
previsto na Lei de Execução Penal e recomendado pelo Ministério da Justiça, a
imensa maioria das unidades prisionais simplesmente não fornece itens de
higiene pessoal aos detentos, obrigados a negociar sabonete, pasta de dentes e
até papel higiênico com as organizações criminosas. Isso gera dívidas que
continuam a ser cobradas inclusive após os presos serem libertados. E tornar-se
a mais rápida estrada para a reincidência.
Denúncias de superfaturamento e falta
de higiene no preparo dos alimentos pipocam em quase todos os estados. “O
modelo adotado favorece a fraude”, afirma Eduardo Nepomuceno, da Promotoria de
Defesa do Patrimônio Público de Minas Gerais. “As empresas superestimam a
quantidade de presos, vendem um cardápio e entregam outro, e a fiscalização não
existe. Como é possível medir mil refeições para ver quais pesam a mais ou a
menos?”
Nepomuceno foi, em atuação conjunta com
a Polícia Federal, um dos responsáveis pelas investigações da Operação Laranja
com Pequi, que desbaratou um esquema responsável pelo desvio de ao menos um
terço dos 166 milhões de reais pagos pelo governo de Minas Gerais aos
fornecedores de alimentação aos presos entre 2009 e 2011. Sete empresas estão
envolvidas, lideradas pela Stillus Alimentação, de propriedade de Alvimar de
Oliveira Costa, irmão do senador Zezé Perrella (PDT-MG), que chegou à política
depois de presidir o Cruzeiro, time de maior torcida no estado. Em setembro de
2012, o Tribunal de Justiça (TJ) mineiro chegou a invalidar as provas obtidas
pelos promotores, mas o Ministério Público estadual recorreu e, há um mês, o
Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou a decisão do TJ.
À época da anulação, os promotores
criticaram o fato de Doorgal Andrada, um dos desembargadores que tomaram a
decisão, ser irmão do deputado estadual Lafayette Andrada (PSDB), secretário
estadual de Defesa Social quando teriam ocorrido as fraudes. “Na esfera das
relações políticas, contam com eficiente ‘blindagem’ que lhes é proporcionada
pelos agentes políticos aos quais estão intimamente relacionados, seja em razão
do grau de parentesco, seja em razão dos abundantes recursos de origem ilícita
que lhes são destinados”, escrevem os promotores na ação. Com a validação pelo
STJ, a investigação será retomada, assim como os pedidos de prisão dos
envolvidos.
Segundo o advogado da Stillus, Antonio
Velloso Neto, as denúncias são infundadas e o STJ ainda não julgou um segundo
habeas corpus impetrado por seus clientes. O senador Perrella, afirma Velloso
Neto, não possui vínculo com a empresa do irmão. O advogado classifica de
“absurda” a queixa em relação ao parentesco entre o desembargador e o
ex-secretário estadual. “Não tem nada a ver. A Stillus fornece alimentação para
os presídios desde o governo Newton Cardoso, há mais de 20 anos. Por que só
agora apareceriam irregularidades?”
Outra investigação, desta vez do
Conselho Administrativo de Defesa Econômica, órgão federal antitruste, apura a
denúncia de formação de cartel por mais uma gigante do fornecimento de marmitas
a presídios. O nome da Cial Indústria e Comércio de Alimentos, responsável pela
alimentação de detentos em Goiás, Distrito Federal, Rio de Janeiro e Pará,
chegou a aparecer durante as investigações da Operação Monte Carlo, vinculado
ao bicheiro Carlinhos Cachoeira. Segundo a PF, Cachoeira teria usado de sua
influência no poder público para a empresa vencer uma concorrência de
fornecimento de marmitas no maior presídio de Goiás, estado administrado pelo
tucano Marconi Perillo.
Neste mês, uma concorrente da empresa
em Brasília entrou com um pedido de liminar na Justiça para anular uma
licitação do governo do Distrito Federal, administrado pelo PT. Motivo? A Cial
teria solicitado mudanças na redação do edital, inclusive a exigência de
cozinha própria instalada. Como a empresa já possui contato com a administração
distrital, isso a teria colocado em vantagem em relação às demais. No Pará, em
março deste ano, o contrato da empresa com o governo estadual, atualmente
administrado pelo PSDB, no valor de 100 milhões de reais foi suspenso por
suspeita de contaminação na licitação. Quem se queixou na Justiça e havia perdido
o contrato por uma diferença de 1 centavo no preço de cada refeição é a mesma
concorrente da Cial em Brasília.
A Cial se defende. Para a empresa, a
investigação do Cade baseia-se em denúncia anônima “com toda a certeza
patrocinada por uma empresa que não conseguiu sucesso na concorrência”. A
fornecedora também negou entregar comida de baixa qualidade e disse que a
insatisfação dos presos decorre do fato de “estarem segregados da vida social e
sujeitos a rebeliões”. Sobre as liminares em Brasília e no Pará, os advogados
da Cial atribuem ao descontentamento de concorrentes.
No Acre, desde a chegada do PT à
administração estadual, em 1999, uma mesma empresa fornece alimentação aos
presídios, a Tapiri Indústria de Alimentos, de propriedade da família de Pascal
Khalil, ex-vereador pelo PCdoB de Rio Branco, ex-secretário municipal de Saúde
e atual procurador-geral do município. No ano passado, após inspeção, o
Departamento Penitenciário Nacional orientou o estado a rever o contrato por
superfaturamento nos valores e pela utilização de produtos com validade
vencida. Na eleição passada, a Tapiri doou 257 mil reais ao candidato petista
em Rio Branco e atual prefeito, Marcus Alexandre.
“As doações foram feitas de acordo com
o que a legislação permite. No passado, também doamos a outros candidatos, não
foi só para o PT. A empresa existe desde 1972”, diz o gerente-geral da Tapiri,
Lourival Camilo. Segundo ele, são inverídicas as acusações de superfaturamento.
A última licitação vencida pela empresa há dois anos, afirma, foi acompanhada
por representantes do Ministério Público. O uso de produtos fora do prazo de
validade teria sido “um caso isolado”. Quanto ao parentesco com Khalil, Camilo
atribuiu às coincidências de “cidade pequena”. “Não tem nada a ver uma coisa
com a outra.”
Em março, uma equipe da Comissão de
Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil do Espírito Santo fazia uma
vistoria no Centro de Detenção Provisória do Complexo Penitenciário de Viana
quando a direção mandou devolver as “quentinhas” a serem servidas na ala
feminina por elas estarem “estragadas e fedendo”. Segundo relatos das presas,
já foram encontrados pedaços de plástico, vidro, madeira, sacolas e insetos
misturados à comida. Por não conseguirem identificar o tipo de carne servido,
as detentas criaram um apelido: “carne de monstro”. Muitas disseram passar mal
com frequência, com vômitos, dores estomacais e diarreias.
A OAB e o Ministério Público prometem
ingressar com uma ação civil pública contra a empresa Viesa, fornecedora de
alimentação aos presídios capixabas. Mesmo antes dessa inspeção, as denúncias
sobre as marmitas eram frequentes entre os presos, mas só em setembro de 2012 o
governo estadual, sob comando do PSB, começou a aplicar multas. “Não consigo
explicar a contratação dessa empresa e também não sei por que não se rompe esse
contrato”, critica o presidente da OAB-ES, Homero Mafra.
Notícias semelhantes se repetem em
várias unidades da Federação. Em São Paulo, entidades de defesa dos direitos
humanos nas cadeias da capital avistaram a mesma “carne de monstro”, na forma
de hambúrgueres tão brancos que era impossível dizer se eram de boi, porco ou
frango. Em 2009, a CPI do Sistema Carcerário encontrou, Brasil afora, refeições
em sacos plásticos, denúncias de insetos e objetos estranhos na comida e
“quentinhas” rejeitadas amontoadas fora das celas. “A pouca quantidade e a má
qualidade da comida servida não condizem com os preços exorbitantes que o
contribuinte paga, em média 10 reais por preso”, resume o relatório da CPI. De
lá para cá, quase nada mudou.
“Aalimentação é ruim no País inteiro”,
afirma o juiz Douglas de Melo Martins, coordenador do Departamento de
Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Conselho Nacional de
Justiça. “Os lugares com alimentação boa são exceção e não há dúvida de que
este é um fator de desestabilização do sistema. Não se trata somente de
direitos humanos: o custo das rebeliões é muito alto, causa insegurança na
sociedade e dificulta a reinserção social.”
No livro sobre os mutirões realizados
pelo CNJ, a comida é descrita como precária e motivadora da corrupção nos
presídios. Em muitas unidades se institucionalizou a prática conhecida como
“Cobal”, quando alimentos e outros itens levados por familiares são revendidos
em mercados clandestinos. No Rio Grande do Sul, existem cantinas terceirizadas
no interior dos presídios, mas os itens são disputados entre as facções
criminosas, que os revendem aos presos comuns. Esse tipo de comércio favorece a
criação de um elo: fora da cadeia, o preso continua em dívida com a organização
criminosa.
O mesmo acontece em relação aos itens
de higiene pessoal. Se a família não leva, o detento acaba dependente do
comércio clandestino dominado pelas facções. Em janeiro deste ano, a Defensoria
Pública de São Paulo denunciou: as presas da cadeia feminina de Colina, em
Ribeirão Preto, usavam miolo de pão para substituir os absorventes íntimos.
“Lamentavelmente, o Estado omite-se e isso fomenta o crime organizado. Deixa o
preso endividado e com obrigações com essas facções, que cobram mensalidade de
quem saiu. Como vai pagar? Cometendo novos crimes”, diz Douglas Martins.
Até o fim da década de 1980, o Estado
era o responsável pela alimentação dos detentos nos presídios do País. A partir
daí iniciou-se um movimento pela terceirização do fornecimento de comida,
inspirado no modelo prisional dos Estados Unidos. No início dos anos 2000, o
empresário Jair Coelho, apelidado de “Rei das Quentinhas”, foi investigado pelo
Ministério Público do Rio de Janeiro por superfaturamento na alimentação
fornecida aos presídios. Entre 1988 e 2000, suas empresas detiveram o monopólio
das marmitas destinadas aos presos cariocas, com um faturamento de 80 milhões
de reais por ano. A mulher dele, Ariadne, viraria personagem da crônica social
carioca, símbolo da nova classe “emergente” da Barra da Tijuca.
Passados 13 anos, em um único ponto a
situação mudou. Hoje não existe um, mas vários “reis das quentinhas” (quadro ao
lado). Ao mesmo tempo, aumenta o lobby para expandir a terceirização no País
até a administração das próprias cadeias. O Brasil tem atualmente 21 presídios
com gestão privatizada. Há quem considere o modelo, à moda norte-americana, uma
benesse, mas o fato é que ele não reduz os gastos públicos. Ao contrário. Cada
detento no sistema privado, calcula-se, custa perto de 3 mil reais por mês, ante
1,3 mil em cadeias públicas.
Além disso, comprova a experiência nos
EUA, o sistema leva a uma mercantilização das prisões. Com 2,3 milhões de
encarcerados, as cadeias americanas viraram um grande negócio e dão enorme
lucro a empresas dos ramos de telefonia e saúde privada. A revista The Nation
publicou recentemente um levantamento do lucro fácil nos presídios de Tio Sam.
Uma ligação telefônica de uma cadeia custa 1,13 dólar por minuto, até 30 vezes
mais do lado de fora. Apenas uma operadora, a GTL, fatura 500 milhões de
dólares anuais com a exploração das chamadas feitas por presidiários.
A privatização das prisões nos EUA não
eliminou as denúncias de maus-tratos e torturas. Segundo os defensores de
direitos humanos, a fórmula adotada (o governo paga por vaga existente em cada
cadeia, esteja ela ocupada ou não) teria levado ao aumento galopante no número
de encarcerados e à aplicação de penas mais duras. Dessa forma, o poder público
justificaria o modelo de pagamento adotado. “A prisão tornou-se um depósito de
pobres”, afirmou ao The New York Times o sociólogo Bruce Western, da
Universidade Harvard.
Em São Paulo, que abriga um terço do
total de presos brasileiros, o governo aguarda a definição dos terrenos para
lançar o edital da Parceria Público-Privada (PPP) para a construção de três
complexos penitenciários que abrigarão mais de 10 mil detentos e serão
administrados pela iniciativa privada. “As prisões privadas estão entrando como
um tsunami no Brasil, infelizmente”, critica a socióloga Julita Lemgruber,
ex-diretora do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro e coordenadora do Centro
de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes. “Espanta-me
que o governo federal, do PT, esteja comprando a ilusão de que privatizar uma
prisão resolve.” Segundo o Ministério da Justiça, o governo ainda estuda o
tema.
Para Julita, o Estado deveria investir
na libertação dos presos provisórios (mais de 40% dos detidos no País não foram
submetidos a julgamento). “Uma quantidade enorme de presos só está lá por não
ter dinheiro para pagar um advogado. Tem de cumprir a lei e dar liberdade
condicional a quem tem direito”, defende a socióloga. Muitos adversários das
prisões privadas, lembra a estudiosa, argumentam que a medida seria
inconstitucional, mas prefere situar sua crítica no campo ético e moral.
“Licitar prisões é o mesmo que oferecer o controle da vida de homens e mulheres
para quem der o menor preço, como se o Estado tivesse o direito de dispor
dessas vidas como bem lhe aprouvesse.”
À parte a imoralidade, sobram denúncias
contra as empresas privadas que administram prisões. Considerado modelo,
o Presídio Industrial de Joinville, em Santa Catarina, foi alvo de
sindicância em junho deste ano por causa da fuga de dois presos. A investigação
recomendou a demissão de um funcionário contratado pela empresa responsável, que
teria facilitado a fuga. Em setembro, a Polícia Civil do Tocantins afastou
funcionários da empresa Umanizzare, que administra dois presídios no estado,
por suspeita de participação nas constantes tentativas de fuga no Presídio
Barra da Grota, em Araguaína.
Segundo o Sindi- cato dos Policiais
Civis do Tocantins, o fato de serem contratados e não concursados deixaria os
funcionários mais vulneráveis à corrupção. O presídio privatizado de Serrinha,
interior da Bahia, também foi alvo de denúncias da Pastoral Carcerária neste
ano por tortura e maus-tratos aos detentos. Em Rondônia, funcionários da
empresa Bandolin, outra fornecedora de marmitas aos presídios públicos, foram
demitidos ao se comprovar seu auxílio na infiltração de celulares na cadeia de
Vilhena dentro de garrafas térmicas.
Os especialistas ouvidos por
CartaCapital são unânimes: não se trata de privatizar ou abrir novas vagas, mas
de reduzir a superlotação e cobrar eficiência da direção dos presídios. Em
termos alimentares, está comprovado, como sugeriu a CPI do Sistema Carcerário,
que a comida melhora quando os presos participam de sua preparação, além de
garantir ocupação, remuneração e redução da pena. Também influencia no cardápio
a parceria com agricultores das regiões próximas aos presídios, como ocorre nas
11 unidades prisionais da Região Metropolitana do Vale do Paraíba, no interior
de São Paulo.
“Quando preparada pelos presos, a
qualidade da comida é muito superior àquela da terceirizada e custa menos”, diz
Camila Dias, socióloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP,
para quem as marmitas e seus “reis” são um indício de que a privatização do
sistema não é a saída. “Existe hoje um lobby fortíssimo pelo repasse da
administração à iniciativa privada, mas as refeições demonstram que esse modelo
não é sustentável.”
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