FERNANDO HENRIQUE
CARDOSO (EX-PRESIDENTE DA REPÚBLICA)
Cartas na mesa
A execução de programas sociais encontra
dificuldades porque a estrutura estatal é burocratizada e corporativista; e a
sociedade não tem como pagar mais tributos É preciso abrir o jogo: não se trata
só de Dilma ou do PT, mas da exaustão do atual arranjo político brasileiro. E
mais: o que idealizamos na Constituição de 1988, cujo valor é indiscutível, era
construir uma democracia plena e um país decente, com acesso generalizado à Educação
pública, Saúde gratuita e Previdência Social. Mais ainda, acesso à terra para
os que nela precisassem trabalhar, bem como assistência social aos que dela
necessitassem. A execução desse programa encontra dificuldades crescentes
porque a estrutura estatal é burocratizada e corporativista. E também porque a
sociedade não quer e não pode pagar cada vez mais tributos quando os gastos não
param de se expandir. Era inevitável que nos encontrássemos nessa situação?
Não. Contudo, para evitar a crise do sistema de partidos e da relação
Executivo/Legislativo, teriam sido necessários, no mínimo, os contrapesos da
“lei de barreira” e da proibição de alianças partidárias nas eleições
proporcionais, restrição aos gastos de campanha e regras mais severas para seu
financiamento. Mas não é só. A má condução da política econômica tornou
impossível ao governo petista seguir oferecendo os benefícios sociais
propostos, senão pagando o preço da falência do Tesouro. Não me refiro às
bolsas, que vêm do governo Itamar, foram ampliadas em meu governo e
consolidadas nos governos petistas: elas são grãos de areia quando comparadas
com as “bolsas empresários” oferecidas pelos bancos públicos com recursos do
Tesouro. Sem mencionar o grau inédito de corrupção, azeite que amaciou as relações
entre governos, partidos e empresas e que deu no que deu: desmoralização e
desesperança. Oxalá continue a dar cadeia também. Diante disso, como manter a
ilusão de que as instituições estão funcionando? Algumas corporações do Estado,
sim, se robusteceram: partes do Ministério Público e da Polícia Federal,
segmentos do Judiciário, as Forças Armadas e partes significativas da
burocracia pública, como no Itamaraty, na Receita e em algum ministério, ou no
Banco Central. Entretanto, no conjunto, o Estado entrou em paralisia, não só o
Executivo, como também a burocracia e o Congresso. Este pelas causas acima
aludidas, cuja consequência mais visível é a fragmentação dos partidos e a
quase impossibilidade de se constituir maiorias para enfrentar as dificuldades
que estão levando ao desmonte do sistema político. Nada disso ocorreu de
repente. Repito o que disse em outras oportunidades: na viagem que a presidente
Dilma fez em 2013 para prestar homenagens fúnebres a Mandela, acompanhada por
todos os ex-presidentes, eu mesmo lhes disse: o sistema político acabou; nossos
partidos não podem ou não querem mudar; busquemos os mínimos denominadores
comuns para sair do impasse, pois somos todos responsáveis por ele. Apenas o
presidente Sarney se mostrou sensível às minhas palavras. Agora é tarde.
Estamos em situação que se aproxima à da Quarta República Francesa, cujo fim
coincidiu com os desajustes das guerras coloniais, tentativas de golpe e,
finalmente, a solução gaullista. Aqui as Forças Armadas, como é certo, são garantes
da ordem e não atores políticos. É hora, portanto, de líderes, de pessoas
desassombradas, dizerem a verdade: não sairemos da encalacrada sem um esforço
coletivo e uma mudança nas regras do jogo. A questão não é só econômica. Sobre
as medidas econômicas, à parte os aloprados de sempre, vai-se formando uma
convergência, basta ler nos jornais o que dizem os economistas. Mesmo temas
sensíveis, nos quais ousei tocar quando exercia a Presidência e que caro me
custaram em matéria de popularidade, voltam à baila: no âmbito trabalhista,
como disse o novo presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Gandra Martins,
citando como exemplo o Programa de Proteção ao Emprego, comecemos por aceitar
que o acordado entre os sindicatos prevaleça sobre o legislado, desde que
respeitadas as garantias fundamentais asseguradas aos trabalhadores pela CLT.
Enfrentemos o déficit previdenciário, definindo uma idade mínima para a
aposentadoria que se efetive progressivamente, digamos, em dez anos. Aspiremos,
com audácia, que um novo governo, formado dentro das regras constitucionais,
leve o Congresso a aprovar algumas medidas básicas que limitem o endividamento
federal, compatibilizemos gasto público com o crescimento do PIB e das
receitas, e melhorem o sistema tributário, em especial em relação ao ICMS.
Dentre as medidas fundamentais a serem aprovadas, a principal é, obviamente, a
reformulação da legislação partidário-eleitoral. O nó é político: eleições com
a legislação atual resultarão na repetição do mesmo despautério no Legislativo.
Há que mudar logo a lei dos partidos, restringindo a expansão de seu número, e
alterando as regras de financiamento eleitoral para evitar a corrupção. Por
boas que tenham sido as intenções da proibição de contribuição de empresas aos
partidos, teria sido melhor limitar a contribuição de cada conglomerado
econômico a, digamos, X milhões de reais, obrigando as empresas a doarem apenas
ao partido que escolherem, e por intermédio do Tribunal Superior Eleitoral, que
controlaria os gastos das campanhas. A proibição pura e simples pode levar,
como ocorreu em outros países, a que o dinheiro ilícito, de caixa dois ou do
crime organizado, destrua de vez o sistema representativo. Ideias não faltam.
Mas é preciso mudar a cultura, o que é lento, e reformar já as instituições. É
tempo para que se verifique a viabilidade, como proposto pela Ordem dos
Advogados do Brasil e por vários parlamentares, de instituir um regime
semiparlamentarista, com uma Presidência forte e equilibradora, mas não
gerencial. Só nas crises se fazem grandes mudanças. Estamos em uma. Mãos à obra.
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