LUAS, VENTOS E MARÉSE não é que o poeta está certo. Por causa de certos encontros, vira e mexe, lembro-me do nosso poetinha Vinícius de Moraes: “A vida é a arte do encontro”. E haja arte em tantos momentos assim! Porque essa é uma verdade mais que natural quando se vive de verdade esses encontros. Mesmo desencontrados, como o de Zaqueu com Jesus, encontros são reais e frutíferos. O contrário, claro, é desencontro.
Encontrei recentemente o ator global Paulo Betti num evento aqui em São Luís. Depois da inevitável foto com o fã (no caso, “eu”), ele investe numa pergunta boba e interessante ao mesmo tempo. Queria saber se o vento, aqui na “ilha”, era sempre assim — forte e constante.
Na minha praia, não tinha como escapar a algumas breves explicações. E mergulhei de cabeça nessa história dos ventos e das marés — e, por tabela, da Lua. Tão imerso nessa onda, parecia um daqueles professores de geografia que levam seus alunos para excursões em lugares pitorescos. E juro que não decepcionei meu interlocutor, e nem decepcionaria o Téo Pereira, uma de suas personagens mais marcantes, que, entre “clicks” e “likes” era o ponto alto da novela Império (Globo, 2014).
O conhecimento sobre esses eventos naturais aprendi-os com meu pai, ainda pré-adolescente. Em 1961/62, seu Manoel inventou de mudarmos do velho e bom João Paulo para a Ponta de São Francisco, uma área desconhecida que se desenvolveria com a construção de uma ponte, promessa antiga dos políticos. E lá fomos nós para o outro lado do Atlântico. Com 9 anos, era o que eu pensava dessa mudança. Perto de se aposentar, meu pai queria morar numa comunidade fora da área urbana. A Ponta de São Francisco nascia do outro lado do Rio Anil, cujo canal passava ao lado da avenida Beira-Mar. No fundo, o segundo sargento da PM queria mesmo era levar uma vida interiorana: criar galinhas, capinar o terreno de 50X30m para plantar melão, vinagreira, maracujá. De origem interiorana — mas já acostumada à vida na urbe — minha mãe não simpatizava com a ideia do marido, mas...
Três ou quatro anos depois, nem sinal da ponte, que só seria inaugurada em fevereiro de 1970 pelo então governador José Sarney. Aliás, chegaram a pôr algumas pilastras que, abandonadas, foram severamente afetadas pela força da maré e cobertas por materiais trazidos pelo rio.
Instalados na penúltima casa da rua 1, minha mãe logo se habituou com o local. Só uma coisa a incomodava sobremaneira: a temível travessia do canal do Rio Anil nas canoas de ginga, que acomodavam cerca de dez passageiros, sentados em quatro ou cinco tábuas (bancos) horizontais, uma atrás da outra. Nas marés altas da Lua nova ou cheia, os ventos fortes típicos do segundo semestre criavam ondas gigantes que balançavam a canoa, provocando gritos assustadores dos passageiros. Eu e minha irmã mais nova fazíamos essa travessia diariamente para ir e voltar da Escola Modelo Benedito Leite, no centro da cidade. Na ida, geralmente acompanhados de nosso pai, que ia para o quartel da PM, na rua da Palma, no Desterro, o tradicional Convento das Mercês, no centro histórico de São Luís, que hoje abriga o Museu da Memória Republicana.
A vida nessa comunidade nos permitiu aprender muitas coisas antes de abrirmos as páginas dos livros. Sem luz elétrica e sem televisão, estávamos todos juntos ao cair da noite. Minha mãe ouvia sua novela predileta às 18h; em seguida, todos acompanhávamos as aventuras de Jerônimo, o Herói do Sertão.
Das muitas histórias que guardo, uma revela a singeleza da vida simples e humilde do interior. Os pescadores atracavam no porto, de acordo com a maré. Se era à tarde, minha mãe me mandava comprar uma ou duas cambadas de peixe pedra. Um dia, distraí-me numa pelada e perdi o dinheiro que guardava enrolado no cós do calção. Deixo-lhe à vontade para imaginar o fim dessa história.
Além disso, nosso pai explicava muitas coisas sobre a natureza. Sabia tudo sobre o movimento dos astros no céu e os ventos e marés aqui na terra. Comprava anualmente o Almanaque do Pensamento, uma publicação que reunia “um calendário com datas das principais efemérides astronômicas como os solstícios e as fases lunares”. Foi ele quem me ensinou a reconhecer e admirar a Estrela d'Alva, que aparece ao leste, antes do amanhecer e que, na verdade, é o Planeta Vênus.
Esse conhecimento empírico me enche de orgulho do meu pai. No domingo passado (10-12), curtindo o belo dia de sol na Praia do Meio, ensaiei perguntar à minha mocinha de 13 anos por que, naquele momento, os mais de vinte navios na Baía de São Marcos estavam de frente para o Sol. Sem resposta, satisfiz-me com o visual à minha frente. Bem, são outros tempos, não é verdade?
De volta à conversa com o ator global, fiz dos ensinos de Seu Manoel uma exposição abreviada sobre o clima do litoral nordestino, em especial da nossa Atenas Brasileira, nessa época do ano. Precisei interromper para não ser chato, mas "tinha tanta coisa pra falar". E, sem saber, nesse encontro breve e casual, sua curiosidade levou-me a uma viagem emocional ao encontro do meu saudoso pai e dos meus tempos de pré-adolescente.
Infelizmente a Lua não deu as caras nesse dia, deixando o protagonismo da noite com o vento, que cumpriu direitinho o seu papel.
_____
*eloy melonio* é contista, cronista, poeta e letrista