Por José
Sarney
Quando
Tancredo Neves morreu, deixou-me com a difícil e quase impossível tarefa da
transição democrática: sair do regime autoritário militar para o estado civil
de direito.
Só eu sei
e guardo o quanto foi difícil. O país estava dividido. Na área militar a
maioria, a linha dura, era contra a abertura iniciada por Geisel e continuada
por Figueiredo. Do lado civil a paisagem não era nada animadora: divisão
completa entre grupos que iam da extrema esquerda, passando pelos agitadores,
pelos moderados até aos adeptos da volta dos militares.
A
Constituinte, por mim convocada, virou uma festa e a bacia das almas, cheia de
candidatos a presidência querendo depor-me. Não foi feita com os olhos no
futuro. Dela saiu a Constituição que tornou o país ingovernável, como se vê
agora. Parlamentarista e presidencialista, capitalista e socialista.
Por duas
vezes tive que sustenta-la: uma, quando tentou retirar das atribuições das
Forças Armadas a de assegurar a ordem interna. Estivemos à beira do retrocesso.
Outra, quando quiseram submeter a propriedade privada a controle social. Depois
foi paralisada pela impossibilidade de se aceitar que a Comissão de
Sistematização impusesse um projeto aprovado por 47 votos, que só poderia ser
modificado por dois terços dos 559 constituintes. Era um golpe da esquerda
radical contra a maioria. Ajudei Ulysses a superar o impasse e concluir a
Constituição de 88, com o apoio de patrióticas lideranças do Congresso. Caso
contrário iríamos seguir o caminho das constituintes de 1823, dissolvida, ou de
1934, que deu no Estado Novo do Getúlio.
Enfrentei
12.000 greves movidas por desestabilizar o governo e algumas vezes estivemos à
beira da anarquia. Enfrentei-as democraticamente e com muita paciência.
Terminamos
com o país redemocratizado. Os militares voltaram aos quartéis e integraram-se
ao poder civil, síntese de todos os poderes. Pacifiquei a nação, tive eleições
todos os anos, normalmente e sem traumas. Obra de engenharia política que, sob
minha liderança, construiu um novo Brasil, voltado para o social, com
oportunidades para todos, em que um operário, Lula, foi candidato em 89 e
chegou a ser Presidente da República em 2002. Os partidos de esquerda, como o
PC do B, que viviam sempre na clandestinidade, foram legalizados por mim. João
Amazonas, seu fundador, transformou-se em meu amigo. O Brasil cresceu uma
Argentina, 5% ao ano, 25% no período. O Brasil passou para o 6º lugar na
economia mundial. Deixamos as instituições consolidadas e um país pacificado.
Fui o
presidente que fez a transição democrática. O brasilianista Ronald M.
Schneider, autor do clássico Latin American History: Patterns &
Personalities, disse ter sido ela “a mais exitosa do mundo”, com grandes elogios
a minha atuação. Tenho orgulho de ter prestado esse serviço ao meu país e a sua
História. A democracia agonizante não morreu em minhas mãos, ao contrário,
ressuscitou. Meu temperamento de paciência, de diálogo, de prudência e de
espírito de conciliação salvou o país.
Sabe Deus
o que passei. Mas, hoje, 30 anos depois, eis mais uma eleição. As instituições
recriadas resistem a tudo. E os cidadãos que participam lembram-se de quem,
modestamente, abriu o poço.
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