terça-feira, 9 de novembro de 2021

COLUNA DO JOSÉ SARNEY - AFONSO E GETÚLIO

 Por José Sarney

Afonso Arinos de Melo Franco deu à tribuna parlamentar brasileira uma dimensão muito elevada, com peças memoráveis, que orgulhariam qualquer Parlamento, em qualquer tempo.

Em 1954, com o suicídio de Getúlio, teve uma profunda crise de depressão, supondo, como bom católico, que teria sido seu discurso do dia 9 de agosto — brilhante discurso! — o responsável pelo ato extremo do Getúlio.

Desse discurso arrependeu-se e, pelo resto de sua vida, não gostava de que o relembrassem dele. Afonso Arinos, seu filho, dizia que naquele momento o pai pensava no irmão, Virgílio, que fora um dos principais articuladores da queda do Estado Novo, assassinado em 1949. Virgílio, nos últimos dias de sua vida, acreditava estar sendo seguido pela guarda pessoal de Getúlio.

Segundo Afonsinho, tempos depois, Café Filho e Gustavo Capanema diriam a Afonso: “Seu discurso derrubou o governo.”

A série de discursos que vão do atentado de Tonelero ao suicídio de Getúlio forma algumas das páginas mais brilhantes nos Anais da vida parlamentar brasileira! Seu discurso do dia 13 termina assim:

“…lembre-se homem, pelas igrejas da minha terra, que ontem bateram os sinos contra a sua voz; lembre-se, pelos olhos azuis da Irmã Vicência, que se curva, hoje, com seus oitenta anos, no Convento de Diamantina, rezando pelo bem do Brasil; lembre-se, homem, pelos pequenininhos, pelos humilhados, pelos operários, pelos poetas: lembre-se dos homens e deste país e tenha coragem de ser um desses homens, não permanecendo no governo, se não for digno de exercê-lo.”

Eu lhe dizia que o Getúlio certamente não teria lido o seu discurso e seria o envolvimento familiar no drama que lhe trouxera a dúvida entre a vida e o suicídio. Não teriam sido as palavras de Afonso que o fizeram praticar o gesto extremo.

Afonso nunca deixou de acreditar que seus discursos tinham responsabilidade no suicídio do Presidente. Um pouco por vaidade e outro por peso de consciência, que ele guardou até o fim.

Quando, já depois da morte de Afonso, Lira Neto publicou seu excelente livro sobre Getúlio, ficou claro que sua atração pelo suicídio era antiga e que ele viveu seus dias finais num inferno íntimo, sentindo-se traído e abusado.

Afonso costumava contar um caso que mostra como a lembrança de culpa se transforma na memória. Um seu colega da Faculdade de Direito enfrentou um ladrão que tentara roubar a carteira de uma colega. Derrubou o ladrão, tomou-lhe a carteira e, ainda com um pé em cima do cujo, teve direito a uma foto como herói na primeira página do jornal Estado de Minas.

Passou o tempo e, um dia, Afonso Arinos pediu a seu pai, Afrânio de Melo Franco, que arrumasse uma colocação para o antigo amigo e herói. Quando disse o nome do colega, o pai indagou-lhe:

— Não foi esse, Afonso, que esteve envolvido no roubo de uma carteira?



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