domingo, 24 de setembro de 2023

COLUNA DO DR. ERIVELTON LAGO


O PRIMEIRO HOMEM CIVILIZADO

Aukê era um indiozinho muito sapeca. Ainda no ventre da sua mãe, antes de completar os 9 meses para nascer, ele já aprontava. Na verdade, ele não queria nascer de forma alguma. Os meses da gestação se passavam, e ele permanecia escondido no ventre da mãe. Só à noite é que ele dava uma saidinha para ver como era o mundo, transformado num preá, numa paca ou num outro bicho qualquer, mas quando o dia amanhecia ele retornava para dentro da barriga aconchegante da sua mãe. Um certo dia, por volta dos nove meses da gravidez da mãe, ele foi obrigado a nascer definitivamente e não pôde mais retornar para o ventre materno. Na verdade, o Pajé já havia tentado matar Aukê várias vezes, pois ele achava que o menino traria maldição para toda a Tribo. Pois bem, Aukê nasceu e todos o acharam um belo menino, porém ele crescia muito rapidamente. Além disso, tinha o dom realmente impressionante de ficar igualzinho a todos os que dele se aproximassem. Assim, certa feita, ao receber a visita do membro mais velho da aldeia, um velho de costas encurvadas, o moleque transformou-se instantaneamente num ancião igualzinho a ele. 



Quando o velho visitante saiu, chegou um homem branco e barbudo. No mesmo instante uma barba preta cresceu no rosto do indiozinho até ele ficar com a cara idêntica à do homem branco. Todavia, barbudo e branco, ele sentiu uma imensa vontade de ir para os braços da mãe, assim o fez e voltou a ser menino normal, pequeno e cheio de molecagem. Essas metamorfoses, essas mudanças, porém, encheram de terror a aldeia, e logo trataram de enxergar no menino uma encarnação do Diabo dos homens brancos. Então, quando o medo estava bem entranhado na aldeia, essa conversa chegou ao pai e ao avô de Aukê, dois índios muito malvados: – Que faremos com esta cria do demônio? – perguntou o pai. – Só há um jeito, matar ele. Assim, na manhã seguinte, o avô avistou Aukê brincando numa poça de lama, então disse o avô:  Venha, meu netinho! Venha passear na mata com o vovô! Aukê levantou-se e seguiu o velho desta vez, o pequeno Aukê, por alguma razão que só as lendas explicam, não se transformou numa criatura igual ao avô. Os dois caminharam mata adentro até chegarem próximo a um abismo. – Olhe só como é belo e profundo! – disse o velho, conduzindo o menino até a beira. Aukê olhou superficialmente, só para satisfazer o avô, pois não achava graça alguma naquilo. Neste instante, o velho empurrou o menino e voltou correndo para a aldeia. Felizmente, nem bem começara a cair, o garoto transformou-se numa folha seca e foi descendo de mansinho até pousar, são e salvo, no solo. No mesmo dia, Aukê voltou para casa como se nada tivesse acontecido. Ao vê-lo, o avô correu para abraçá-lo. – Meu netinho! Pensei que tivesse caído e morrido! Todos nós lamentávamos o desastre! A tribo inteira estava triste, sim, mas era por ter o menino de volta. No dia seguinte, o avô levou Aukê para um novo passeio na mata. Ao chegarem nas brenhas, o velho mandou o netinho juntar madeira e fazer uma fogueira bem grande. – Fogueira pra quê? – perguntou o menino, torcendo a boca. – Vamos assar uma carne! O garoto ficou olhando desconfiado para o velho. Assar carne para que, se o avô não tinha mais nenhum dente na boca? O fato é que, quando a fogueira estava bem alta e crepitante, o velho chegou pelas costas de Aukê e o empurrou para dentro das labaredas. Desta vez, não houve prodígio algum: o menino entrou nas chamas e não saiu mais. A partir daquele dia, o lugar onde Aukê morreu se tornou lugar de maldição, e as pessoas só iam lá em grupos, a fim de saciarem a sua sede de morbidez. Numa dessas idas, os visitantes deram de cara com um belo palácio erguido no lugar onde foi feita a fogueira. Aukê estava em pé na porta do palácio, vestido de terno, junto com uma mulher que seria sua esposa. Ele era branco e barbudo. No palácio havia carros, fogão, geladeira, telefones, água encanada, ar-condicionado e dezenas do coisas do mundo civilizado. Aukê mandou que todos entrassem no lindo palácio e seus cômodos. Finalmente, depararam-se com um quarto onde havia uma espingarda de ouro e um arco e flecha prateado expostos na parede. Aukê pediu para o índio mais velho escolher a espingarda ou a flecha como presente, o velho índio escolheu a flecha. Nesse instante Aukê começou a chorar e lamentar, dizendo: se você escolhesse a espingarda todos vocês passariam a ser civilizados como eu, mas como vocês escolheram a flecha, permanecerão índios. Eu estou iniciando a civilização. Sou o primeiro homem civilizado. Moral da história: Aqueles que os índios chamam de brancos incluem pessoas das mais diferentes origens e culturas. Pessoas que os índios não veem como semelhantes - seja por não possuírem uma história comum ou por não terem as mesmas tradições culturais dessas populações. O branco tem origem no não branco.



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